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ARTIGO
Lula, os negócios e a imobilidade da China
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
No rádio e na TV, tem sido um
bombardeio. Lá vai o Lula à China, diz a propaganda, "para ajudar o Brasil". Não sei se os publicitários do governo perderam o
desconfiômetro de uma vez por
todas, mas fica bem exagerado fazer dessa viagem uma expedição
épica, um ato de estadista. E o slogan é uma piada pronta, como se
diz: o presidente ajuda o país indo
para bem longe...
Não chego a tanto. O fato é que
por aqui ele anda perdido, e quando se está desorientado a China
talvez seja um bom destino. A
menos que Lula encontre, como
no poema de Álvaro de Campos,
"um oriente ao oriente do oriente..." - o que significaria andar
em círculos, ou dar guinadas de
180 graus, como tem acontecido
desde a posse.
No imaginário comercial, a China é o lugar das oportunidades
imperdíveis e do pragmatismo
sem limites. No mundo literário,
talvez seja o lugar da imobilidade,
da indiferença, da apatia.
Por via das dúvidas, o presidente tem muitas vezes pedido paciência (chinesa) à população.
Não se muda o país do dia para
noite, afirma; e pode-se acrescentar que nem mesmo no curso de
um mandato. É obra de longo
prazo, que faz lembrar um conto
de Kafka sobre a Muralha da China: os pedreiros nunca paravam
de meditar sobre a obra e, "desde
a primeira pedra enfiada na terra,
sentiam-se consubstanciados
com a empresa". A muralha ia
sendo feita aos pedaços, em trechos separados, e cada vez que
um trecho era unido a outro, havia festas, comemorações, fanfarras. O que diminuía o ceticismo e
o desânimo dos pedreiros.
Também nas especulações de
Jorge Luís Borges haveria um fundo propagandístico na Muralha
da China. O autor argentino comenta que um mesmo imperador, Shih Huang Ti, ordenou a
construção da Muralha e a destruição de todas as bibliotecas.
Talvez fossem dois empreendimentos simétricos: visando a preservar a memória do imperador,
"a muralha tenaz é a sombra de
um César que ordenou que a mais
reverente das nações queimasse o
seu passado".
Renegar o passado é coisa que
se faz com facilidade, talvez mais
aqui do que na China; mas lá também, dos antigos programas revolucionários, restam apenas as
bandeiras vermelhas.
Do ponto de vista comercial, a
viagem é promissora. Negociar
com a China nem sempre foi fácil,
entretanto. O antropólogo Marshall Sahlins analisa as dificuldades
que o embaixador de sua Majestade Britânica, o visconde Mc Cartney, teve de enfrentar em fins do
século 18 ao pleitear a abertura do
comércio em Cantão. Levava ao
imperador amostras da melhor
tecnologia britânica. Garfos, facas
e colheres, por exemplo; carruagens; um globo terrestre; espadas
capazes de cortar ferro.
Espantou-se com o pouco interesse que aquilo suscitou. Os chineses entenderam aqueles presentes como tributos de um súdito exótico. Mostraram depois a
Mc Cartney um pavilhão de caça,
longe da capital. Lá se acumulavam toda sorte de bugigangas ocidentais, caixas de música, brinquedos automáticos, lembrancinhas: há séculos eram guardados
ali, apenas para atestar a variedade do mundo. Serviam como souvenirs do universo -sobre o qual
o poder do imperador se exercia
sem contestação e sem maior interesse.
Hoje, é da China que nos vêm as
quinquilharias tecnológicas mais
inúteis, a que consumimos como
autômatos. A variedade do universo diminuiu bastante. Lula se
entedia no Planalto Central. O
brinquedinho que ganhou não
funciona direito. Está tudo imóvel. Nos corredores, enxames de
mandarins se esgotam em explicações e intrigas, raciocínios, reverências e censuras. Para consumo externo, capricha-se na conversa de camelô.
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