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NO PLANALTO
Exército diz que queimou arquivos, mas não prova
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Normas internas de contra-espionagem do Exército estabelecem regras estritas para a queima de papéis. Vigoram
desde o início da década de 70.
Constam de um manual que,
atualizado ao longo dos anos,
mantém a mesma política quanto aos arquivos secretos.
A última versão é de 1994. Traz
na capa a seguinte inscrição:
"Instruções Gerais de Contra-Inteligência para o Exército Brasileiro". Dedica um tópico à "segurança na destruição". Estipula
que "a destruição de documentos
sigilosos deve ser centralizada, de
forma a evitar desvios".
Meticuloso, o texto recomenda
que "os documentos sejam triturados e depois queimados". Anota ainda que a queima deve ser
precedida da "lavratura de um
termo de destruição".
O ministro José Viegas (Defesa)
afirma que os arquivos militares
sobre a guerrilha do Araguaia foram ao fogo. Ele é providencialmente vago quanto às datas:
"Imagino que isso tenha ocorrido
nos anos 70 ou nos anos 80".
Sugere-se ao ministro que exiba
um "termo de destruição". Antes,
convém certificar-se da idade do
documento. Não ficaria bem divulgar um texto que, submetido
às modernas técnicas de análise
tipográfica, desmoronasse.
A Folha revelou em agosto de
2001 papéis secretos cujo teor desafia a retórica oficial. Contém
detalhes das operações de combate à guerrilha. Informam, por
exemplo, que, ao desembarcar no
sul do Pará, a soldadesca sabia o
que fazer com os corpos inimigos.
Os cadáveres não poderiam ser
desovados a esmo na selva. Depois de identificados, deveriam
ser depositados em covas previamente selecionadas. Em resposta
a questionamentos do repórter, o
Exército expediu quatro anos
atrás uma nota oficial curiosa.
O texto sustentava a pantomima da ausência de informações
sobre o destino dos corpos da turma do PC do B. Mas admitia a
existência dos arquivos que Viegas tenta fazer crer que estão
queimados "há mais de 20 anos".
Dizia a nota oficial de 7 de agosto de 2001: "Quanto aos desaparecidos nos combates travados naquela região, é importante salientar o que o Exército tem reiterado
exaustivamente quando consultado a respeito do assunto: NOS
ARQUIVOS EXISTENTES, nada
foi encontrado que pudesse indicar a localização de seus corpos".
Na década de 90, a cúpula militar concluiu que, submetidas ao
ambiente de abertura política, as
estratégias de "inteligência" precisavam mudar. O resultado do
debate interno foi expresso em
textos sigilosos. Uma parte, redigida sob Fernando Henrique Cardoso, foi obtida pelo repórter.
Os papéis não fazem referência
direta ao Araguaia. Mas admitem o óbvio: a história da repressão política pós-64 permanece
guardada nos cofres das Forças
Armadas. Reconhecem também
que os arquivos secretos guardam
muito "lixo".
O processo de "reformulação"
da inteligência militar começou
em 92. Caminha a passos de tartaruga manca. Sob FHC, houve
mera atualização vocabular. Lula, o PT e seus aliados históricos
-MST e CUT, por exemplo-
passaram da categoria de "subversivos" à de "forças adversas".
De resto, manteve-se em inalterada a usina de processamento de
"lixo".
Uma semana antes da eleição
de Lula, produziu-se em São Paulo um informe alertando para o
"risco" do triunfo do PT. Previa
para 2003 uma onda de "conturbação social". Organizações ligadas ao PT ateariam fogo à conjuntura.
O caos, como se sabe, não veio.
Era lixo. Mas as urnas de 2002 injetaram no submundo da "inteligência" uma perturbadora novidade. O velho "inimigo" virou comandante-em-chefe. De espionado, Lula converteu-se em cliente
da máquina de espionagem.
As coisas logo se acomodariam.
A maleabilidade do ex-PT, também nessa área, foi notável. Mantiveram-se as operações de infiltração no MST. Preservou-se a tática de espionar sindicatos. Inclusive os petistas.
Aqui se noticiou, há quatro meses, que espias da Abin produziram o "relatório de inteligência
número 0119/8140". Traz detalhes
de um encontro de professores em
Salvador. Reproduz declarações
da líder sindical Ronalda Barreto, uma petista de mostruário,
contra a política educacional do
governo.
Em novembro do ano passado,
a Abin de Lula já havia inserido
em seu "Boletim de Serviço Confidencial" rasgados elogios a um
coronel do Exército que se aposentou. O festejado militar condescendera, em 72, com a tortura
e morte de um estudante em
quartel de Goiás. O cadáver trazia um olho vazado e as palmas
das mãos lanhadas. Inventou-se
que cometera suicídio. Enforcara-se com um fio de persiana.
Num ambiente assim, gerido
por um ex-PT tão concessivo, não
espanta que o Exército tenha se
animado a divulgar a nota oficial
em que defende a "legitimidade"
da tortura e da eliminação de
presos políticos. Descobriu-se que
o Vladimir Herzog das fotos que
motivaram a nota disparatada é
falso. Mas a balbúrdia que se instalou na área militar é real.
O caso produziu três personagens inacreditáveis: o general
Francisco Albuquerque, um "comandante" de Exército que não
comanda nem redação de nota;
José Viegas, um ministro da Defesa indefeso e indefensável; e Luiz
Inácio Lula da Silva, um presidente que ainda não logrou presidir os subterrâneos da Segunda
Seção das Forças Armadas.
É certo que governos não podem prescindir de um serviço de
"inteligência". Mas a sobrevivência de uma espionagem tosca e
enviesada ofende o contribuinte.
De resto, passa da hora de o ex-PT brindar o país com uma legislação de acesso ao papelório da
repressão. O brasileiro tem direito
à sua história. E não é justo impor
a Viegas o constrangimento de ter
de inventar uma nova fogueira a
cada novo vazamento.
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