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RELIGIÃO
À véspera de completar 75 anos, bispo, que sofreu ameaças de Médici, vai ao Vaticano para pedir sua aposentadoria
D. Ivo vê "tempos difíceis" para ação da CNBB
MARCELO BERABA
DIRETOR DA SUCURSAL DO RIO
Era o início da década de 70. Os
militares, no governo desde 1964,
esmagavam qualquer tentativa de
organização oposicionista e a
Igreja Católica era uma das poucas vozes resistentes.
No Palácio do Planalto, frente a
frente, dois notáveis se enfrentam, ambos gaúchos. De um lado,
o general-presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), expoente da linha dura do Exército.
Do outro, o bispo progressista José Ivo Lorscheiter, secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Médici o repreende pelas críticas feitas ao regime com uma
ameaça infeliz: se a igreja não se
moderar, os militares se sentirão à
vontade para dar aula de religião.
D. Ivo responde no mesmo tom:
"Nós não criticamos vocês por aspectos técnicos, mas por aspectos
éticos. Vocês fazem coisas moralmente injustas". Em seguida, incentiva Médici a seguir com o plano: "O senhor tem uma família,
tem netos, será uma coisa boa começar a dar catequese". D.Ivo recorda o desfecho da conversa: "Aí
acabou, ele não sabia mais o que
dizer". E a igreja seguiu com as
denúncias de tortura, perseguições políticas, censura prévia e injustiças sociais.
"As duas primeiras promessas
dos militares eram até boas. Estavam fazendo uma revolução contra a subversão e a corrupção, coisa que todos nós queríamos. Mas
logo depois vieram os exageros e
começaram as prisões. Tivemos
que ser contra. Qualquer um era
chamado de subversivo", diz.
Às vésperas de completar 75
anos de vida (no próximo dia 7) e
50 de sacerdócio (no dia 20), o ex-secretário-geral e ex-presidente
da CNBB durante 16 anos (1971 a
1986) embarcou no dia 18 para
Roma, onde entrega pessoalmente ao papa João Paulo 2º seu pedido de aposentadoria, uma exigência das leis da igreja.
Nascido em uma família simples e religiosa (é primo do cardeal Aloísio Lorscheider, tem um
irmão padre, no Japão, e várias
primas freiras), criado em uma
colônia alemã no Rio Grande do
Sul, d. Ivo foi protagonista de um
tempo histórico em que a igreja e
o governo seguiram sempre sinais
inversos.
Último bispo brasileiro nomeado por Paulo 6º ainda com o Concílio Vaticano 2º em andamento,
em 1965, ele mal teve tempo de
respirar o vento liberalizante que
vinha de Roma. A situação interna o colocou à frente da CNBB no
período mais obscuro do regime
militar.
E quando o Estado brasileiro
começou a se distender, Roma,
agora com João Paulo 2º, voltou a
impor a disciplina que mudaria a
face essencialmente progressista
da igreja do Brasil dos anos 70.
Passados 30 anos, o que o regime militar não conseguiu pela
força, o diabete impôs sem revide:
d. Ivo é hoje um homem lento,
com dificuldades para caminhar,
e parece cansado.
Quando voltar do Vaticano, no
final do mês, ele inicia as comemorações do cinquentenário de
sacerdócio. Serão vários dias de
festas com a família e com os católicos. Enquanto aguarda a decisão
do papa sobre a aposentadoria,
permanecerá à frente da diocese
de Santa Maria, no coração do Rio
Grande do Sul.
Ele recebeu a Folha numa tarde
de segunda-feira na residência
episcopal, uma casa com a mesma
idade do hóspede, úmida e desgastada, a exigir cuidados urgentes. A seguir, os principais trechos
da entrevista.
Folha - O senhor é ordenado padre em Roma, em 1952, o ano em
que d. Hélder Câmara funda a
CNBB. O início da década de 50 já
apontava para as mudanças que a
Igreja Católica iria experimentar a
partir de 1962, com o Concílio Vaticano 2º?
D. Ivo - Nós tínhamos a ansiedade de compreender a doutrina social da igreja. Nós, brasileiros,
mais ainda, porque era um país
emergente e nós não queríamos
ficar atrás dos desafios que daqui
se irradiavam. O estudo em Roma
tinha uma vantagem muito grande. Nós morávamos num grande
colégio, o Pio Brasileiro, e conhecíamos melhor o Brasil estando lá
do que morando aqui porque por
lá passavam grandes personalidades brasileiras, como Alceu Amoroso Lima e d. Hélder Câmara, e
havia um ambiente intelectual e
de debate. Havia também tensões
internas, o que era bom. O mundo não era fechado e nós conhecíamos bastante bem o Brasil.
Folha - Quando surge o Concílio
Vaticano 2º (1962), os senhores já
estavam preparados.
D. Ivo - Sim, nós tínhamos nos
preparado bastante bem, sem saber para onde isso ia, é claro. Renovação e fidelidade, isso foi sempre muito presente.
Folha - E como é recebido o anúncio do Concílio?
D. Ivo - Pio 12 era um homem
hierático. Quando entrou João 23,
viu-se que era uma figura diferente, popular, que ia dar um novo
rumo para a Igreja. E foi o que fez.
Era um homem já idoso, de 78
anos, e nós nos perguntávamos: o
que será que vai fazer? Pensávamos que, depois de Pio 12, tinha
de ser um papa de transição. E, no
fim, foi uma transição que sacudiu a igreja.
Folha - O senhor se forma num
ambiente de expectativas de mudanças, mas vai trabalhar como
bispo auxiliar de uma das lideranças mais tradicionalistas daquele
momento, o cardeal d. Vicente
Scherer. Os senhores nunca entraram em conflito?
D. Ivo - Ele dizia, você é novo,
nós não vamos pensar sempre do
mesmo jeito, mas você vai ter aqui
toda a liberdade de ação. E recomendava: "Você só cuida de não
se meter demais em políticas partidárias, isso não é da igreja".
Um dia ele me pediu para que
passasse em Porto Alegre e me
disse: "Olha, eu acho que você deveria moderar um pouco as suas
críticas ao governo militar. Não
estou de acordo com os exageros
[dos militares", mas por que vamos criticar?" Aí eu disse: "Olha,
senhor arcebispo, eu estou lá porque os bispos me elegeram. Eu
não posso ficar muito trancado".
Ele me disse: "É que eles se incomodam". Se incomodam, mas o
que eu vou fazer?
Um dia nos encontramos em
Brasília e ele me disse: "Eu tenho
de visitar o presidente Médici, você me acompanharia?" O presidente era gaúcho, nós só tínhamos a ganhar dando uma palavrinha de saudação. E fomos. O Médici era um homem difícil e não
sabia conversar, coitado. Uma
hora o Médici disse: "Escuta, me
dá licença, já que o senhor trouxe
d. Ivo, secretário da CNBB, eu vou
fazer agora uma reclamação". E se
dirigiu para mim: "D. Ivo, eu vou
pedir a vocês da CNBB que moderem as críticas ao governo. Por
que se vocês não moderarem, nós
vamos ter de mudar de posição.
Eu, presidente, vou começar a dar
catequese até que vocês mudem
de posição e nos deixem fazer a
nossa parte".
Aí eu disse para d. Vicente: "O
senhor me dá licença, já que ele
está falando para mim eu vou dar
a minha resposta. Senhor presidente, nós não vamos mudar a
nossa posição. Nós não criticamos vocês por aspectos técnicos,
mas por aspectos éticos. Vocês fazem coisas moralmente injustas.
Agora, se por isso o senhor começar a dar catequese, nós vamos ficar muito contentes, porque este
não é um trabalho só dos bispos, é
dos leigos. O senhor tem uma família, tem netos, será uma coisa
boa começar a dar catequese. Nós
não vamos ficar bravos, vamos
até lhe aplaudir". Aí acabou, ele
não sabia mais o que dizer.
Folha - Aqueles foram períodos
mais difíceis?
D. Ivo - Eu sempre digo para os
dirigentes atuais da CNBB: aqueles foram tempos mais fáceis do
que agora. Por quê? Porque estavam claros os exageros da ditadura e nós sabíamos que com aquilo
não podíamos compactuar. E hoje? Todo mundo fala de democracia, de direitos humanos, mas o
povo entende menos o que exigir
da CNBB.
Folha - A partir de 70, quando a
relação entre o regime e a Igreja
chegou a um ponto de ruptura, bispos e militares do governo se reúnem secretamente para dialogar.
Foi o período da Comissão Bipartite. Muita gente na igreja achava
que aqueles encontros eram inúteis, porque o regime continuava a
perseguir a oposição. O senhor
também tinha esta avaliação?
D. Ivo - Poderia ficar decepcionado quem achasse que nós íamos converter uns aos outros,
mas nós não queríamos isso. Nós
não pretendíamos converter os
militares nem eles pretendiam
nos converter. Mas as reuniões
eram úteis porque ali se traziam
casos concretos, pedidos de mudanças em casos práticos, informações. Foi bom.
Havia sempre uma certa tensão,
mas o clima sempre foi muito cordial. Eu tinha aprendido uma frase com um bispo metodista do
Brasil: um ministro do evangelho
não pede licença nem desculpas
nem tem medo. Não pede licença
ao governo nem pede desculpas,
se o governo não gostar. E nem
pode ter medo.
Nós sabíamos que, à luz do
Concílio, nós tínhamos que ter
coragem profética, ou seja: não
calar quando deve ser falado, não
deixar de tomar iniciativas quando elas devem ser tomadas.
Folha - O senhor alguma vez sentiu falta de apoio do papa?
D. Ivo - Nunca. João Paulo 2º era
ainda novo, forte, e nos recebeu
sempre que precisamos.
Folha - Qual o balanço que o senhor faz do regime militar?
D. Ivo - As duas primeiras promessas dos militares eram até
boas. Estavam fazendo uma revolução contra a subversão e a corrupção, coisa que todos nós queríamos. Mas logo depois vieram
os exageros e começaram as prisões. Tivemos que ser contra.
Qualquer um era chamado de
subversivo.
Folha - O senhor acha que o papa,
por causa do seu estado de saúde,
deveria se aposentar?
D. Ivo - Ele já disse que não se
sente no direito de se aposentar. A
cabeça dele está boa. É impressionante a carga de trabalho diário
que ele assume. Acho até um
exemplo de como uma pessoa
idosa pode significar muito na situação atual do mundo e da Igreja. Ele é muito presente ainda.
Folha - O que ficou do período de
renovação da igreja do Brasil, como Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base
(Cebs)?
D. Ivo - A Teologia da Libertação
não morreu. O que houve foi um
reajustamento. A Teologia da Libertação não podia ser só no sentido econômico e político. Assim,
acho que ela amadureceu.
As Cebs também. Foi um aparecimento importante. Aí também
se avançou no sentido de ver que
as comunidades de base deveriam
ser comunidades integrais, que
abranjam também aspectos morais, litúrgicos, e não só político
ou partidário. São fenômenos novos que exigiam ajustamentos.
Folha - O senhor acha que o problema da corrupção melhorou ou
piorou no Brasil?
D. Ivo - Acho que ainda estamos
muito corruptos. Um país de tanta riqueza, como chega uma hora
que não tem mais dinheiro? Uma
tristeza.
Folha - O senhor está de acordo
de o combate à fome ser a prioridade zero do próximo governo?
D. Ivo - Fome é também uma
consequência da falta de uma boa
política de produção, de distribuição e das injustiças sociais. Nós
lançamos no ano passado, pela
CNBB, um grande mutirão nacional para a superação da miséria e
da fome. Com fome ninguém vale
nada, não tem perspectiva de vida. Mas tem de olhar todo o conjunto.
Folha - Como o senhor vê a questão dos evangélicos?
D. Ivo - Eu quero ter sempre o espírito ecumênico. Agora, ter bancadas por religião, eu não sou a favor. A Igreja Católica já teve, em
décadas passadas, a Liga Eleitoral
Católica [criada em 1933" e a experiência não foi boa.
Folha - O que o senhor acha da
política do governo Bush de combate ao terrorismo?
D. Ivo - Aquilo é um erro dele insuportável. Achar que ele é polícia
do mundo, não pode ser. Ninguém quer o terrorismo, mas o
método que está aí, a guerra, meu
Deus! E no fim, o homem que
queriam pegar não pegaram. E
agora é o Saddam Hussein. O que
é isso? Está tudo errado.
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