|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
POLÊMICA CRISTÃ
Em meio a polêmica, sociedade lança a 1ª tradução em língua indígena no Brasil
500 anos depois,
os guaranis mbyás
ganham sua Bíblia
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
O guarani mbyá Arlindo Tupã
Veríssimo, 45, é um indígena às
voltas com três deuses. Primeiro, tem o Tupã de seu segundo
nome, a palavra "trovão" em tupi, que os missionários jesuítas
do século 16 usavam para designar Deus de maneira que fossem
compreendidos.
Depois tem Nhanderuete, o liberador da palavra original, segundo a tradição mbyá, que é
um dialeto da língua guarani, do
tronco lingüístico tupi. Por fim,
há Deus, das religiões judaico-cristãs, representado na Bíblia.
Pois esta acaba de chegar na aldeia de Arlindo, por obra da Sociedade Bíblica do Brasil.
A entidade lançou nesta semana a primeira edição completa
no Brasil da Bíblia em uma língua indígena. Até então, havia
traduções esparsas do Novo Testamento e de alguns livros do
Velho Testamento. A aldeia escolhida para o lançamento foi a
de Rio das Cobras, no município
paranaense de Nova Laranjeira.
Nem o local nem a língua foram selecionados ao acaso. Entre os mais de 200 povos indígenas que habitam o Brasil, a
maioria de tradição oral e sem
escrita, os guaranis são dos mais
aculturados e que mais próximos vivem dos centros urbanos.
E o trabalho de tradução teve
participação de comissão composta por membros da aldeia
dos mbyá, entre eles o próprio
Arlindo, irmão do cacique.
"Muita gente se interessava pela
Bíblia, mas não conseguia ler",
afirma ele, que se diz evangélico.
Desejo do povo
O desejo do próprio povo
mbyá também é citado por Robert Dooley, consultor da Sociedade Internacional de Lingüística, que integrou a equipe de tradução. "Acreditamos que cada
grupo tem o direito de ter a palavra de Deus na sua língua. Quando as pessoas a querem mesmo,
quem pode negar a elas?"
Claro que o lançamento suscitou polêmica que vem desde que
Anchieta (1533-97) escrevia suas
peças e poemas de fundo religioso em tupi e os usava para catequizar indígenas que encontrou
em São Vicente e São Paulo.
"A escrita, que foi introduzida
nas culturas indígenas pelos
missionários cristãos com o objetivo explícito da conversão,
quer continuar cumprindo essa
sua função", dispara a antropóloga Maria Inês Ladeira, coordenadora do programa guarani do
Centro de Trabalho Indigenista.
"No caso da Bíblia, de capa
preta e papel-bíblia, o objetivo
fica evidente", continua. "Você
já imagina o pastor indígena
com o livro na mão, com uma
performance dos mecanismos
de conversão dos pastores, desconsiderando as cosmologias indígenas e suas religiões."
A Sociedade Bíblica, criada em
1948 principalmente por igrejas
evangélicas, defende-se. "A crítica pode ser feita e às vezes é até
justa, pois os cristãos erraram, e
muito, ao longo da história", começa Erni Seibert, diretor do
Museu da Bíblia da entidade.
"Mas é preciso limite. O fato de
existirem terroristas islâmicos,
por exemplo, não quer dizer que
o islamismo seja terrorista."
Alfabetização
Além disso, segundo Seibert,
que é professor de teologia e pastor luterano, um dos objetivos
da publicação é a alfabetização
dos mbyás. "Uma vez registrada
a escrita, dá para alfabetizar a
nova geração dentro da língua
dela", acredita. "Isso mantém a
cultura, desperta a criação da
produção literária, estimula o registro das experiências."
Nem mesmo entre os religiosos há consenso. "Tenho muitas
reservas sobre a simples tradução da Bíblia, embora seja católico", diz o padre Bartomeu Meliá,
pesquisador de etnoistória e
considerado um dos maiores especialistas do mundo em guarani. "O trabalho lingüístico com
esse povo poderia se fazer a partir das próprias tradições deles,
aí sim teríamos a sua língua."
Se realimenta debates, de quebra o lançamento acrescenta um
novo capítulo à guerra surda que
trava a Igreja Católica com as religiões evangélicas, para as quais
vem perdendo terreno no Brasil
desde o começo dos anos 70.
Na região de Rio das Cobras,
que abriga cerca de 600 guaranis
mbyás, os índios evangélicos são
minoria -mas quase não há católicos. Segundo relatos de locais, os pastores que lá aparecem
são na maioria norte-americanos e da seita batista.
O fato é que o mbyá Arlindo
Tupã Veríssimo já tem uma Bíblia para carregar debaixo do
braço. Acreditar em Deus é bem
mais complexo. "Agora, no momento, como eu me sinto especialmente, existe Deus, que é acima de todo o mundo, de Tupã,
do Sol e de Nhanderuete."
Texto Anterior: Brasil profundo: Indígenas vão das favelas à busca por ouro Próximo Texto: Deus vira "nosso pai verdadeiro" Índice
|