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FOLCLORE POLÍTICO
A recontagem
BORIS CASOY
As eleições brasileiras viviam a era da cédula única.
Dizia-se então estar definitivamente enterrado o período das
fraudes eleitorais. O sistema era
considerado seguro, quaisquer
dúvidas poderiam ser mais facilmente dirimidas com uma mera
recontagem de votos.
Dr. Gomide, um velho juiz em
final de carreira, presidia sua última eleição. Depois viria a aposentadoria e a vida sossegada. O
pleito fora tranquilo, a apuração,
sem problemas. Bastaria conferir,
assinar, e pronto. De repente, cai
sobre a mesa um requerimento de
recontagem dos votos de uma urna. A secretária informa que na
sala está, impaciente, o autor do
pedido, o sapateiro Donato, famoso pela pouca delicadeza com
que tratava os seres humanos, especialmente os de sua família.
"Manda entrar o reclamante."
Olhos vermelhos, lábios trêmulos, lá estava Donato. "Dr. Gomide. Me candidatei a vereador para ajudar o Brasil. Tenho prontinho um projeto de pena de morte,
outro aumentando o salário mínimo, outro proibindo candidato
chamar ouvinte de rádio de burro
e outro obrigando todo candidato
a pelo menos ter visto uma vaca
duas vezes na vida. Não sei como
perdi a eleição. Agora, tem uma
coisa: tem dente de coelho. Minha
mulher votou em mim e na urna
dela não apareceu nem sequer
um voto no meu nome. Fui roubado. Exijo recontagem."
"Amanhã tá recontado. E o erro, se houver, corrigido." Tarde
da noite, soa a campainha na casa do juiz. Lá estava Amélia, mulher de Donato: "Dr. Gomide.
Meu marido contou que pediu recontagem. Se o sr. disser que não
votei nele, o Donato me mata".
"Mas por que não votou em seu
próprio marido, Amélia?"
"Já acostumei com o Donato.
Mas descobri que sou patriota.
Me arrepio toda quando ouço o
Hino Nacional. Não quero que o
Brasil sofra o que sofri. Já imaginou se Donato chega a presidente? No começo, estimulei a candidatura dele. Minha vizinha Maricota meteu na minha cabeça que
eu devia fazer o mesmo que uma
família de São Paulo: os irmãos
ajudam sempre a eleger o mais
chato deles. Assim se livram do
cara, mas o Brasil paga o pato."
Gomide não teve dúvidas. No
dia seguinte, a "recontagem". Donato estava aliviado, a mulher
votara nele. Gomide com a consciência tranquila. Passara por cima da lei, mas estava convicto de
ter salvo Amélia e o Brasil.
Boris Casoy, 61, âncora e editor-chefe
do "Jornal da Record", escreve aos domingos nesta coluna
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