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NO PLANALTO
Brasília já ensaia o balé das cadeiras
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Sem querer empanar a iminente vitória de Lula, feito notável, sugere-se ao virtual presidente que concilie os festejos com
a leitura do livro "Deodoro, a Espada contra o Império", de Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981).
Lendo-o, Lula talvez caia mais
cedo das nuvens da campanha
para o chão escorregadio da ante-sala do poder. Faltando-lhe tempo, pode ir direto ao trecho que
reconstitui reunião ministerial
ocorrida em 27 de setembro de
1890.
O marechal Deodoro da Fonseca e o general Benjamin Constant
vinham de fundar a República,
no ano anterior. Dirigindo-se a
Constant, que chefiava a pasta da
Instrução, Correios e Telégrafos,
Deodoro reclamou da nomeação
de alguém para o posto de tesoureiro dos Correios do Rio Grande
do Norte sem prévia consulta ao
governador local.
Abespinhado, Constant ergueu
a voz: "Eu nunca me prestarei a
servir de peteca a nenhum governador...". E Deodoro: "Não há razão para se exaltar. Tenho-lhe
dado muitas provas de apreço".
As palavras de Constant mantiveram-se ásperas: "...esta é a
maior das decepções por que tenho passado. Nossas relações já
não são as mesmas. Andam estremecidas". No bate-rebate, chamou o chefe de "tolo", de "monarca de papelão".
"Para militares, como nós, só
um duelo", desafiou Deodoro, fora de si. "Pois seja", aquiesceu
Constant. "Tragam as armas e
vamos decidir já, neste momento..." Não houve duelo. Constant
morreria meses depois, afogado
em mágoas.
Vêm de longe, como se vê, as rinhas por cargos públicos. Como
Lula jamais foi testado em função
executiva, não se sabe se tem vocação para "peteca". Mas logo se
descobrirá. Brasília o espera de
mãos espalmadas.
Em jejum, petistas terão de medir forças com neopetistas, alguns
com os cotovelos colados à mesa
do banquete há anos. O distinto
público não sabe, mas o mapa da
guerra está na internet.
Eis o endereço: www.siorg.redegoverno.gov.br. Siorg quer dizer Sistema de Informações Organizacionais do Governo Federal.
Coisa fina. Cataloga mais de 46
mil órgãos públicos. Anota nome
e sobrenome dos ocupantes de
cerca de 25 mil repartições públicas. Falta o principal: os nomes
dos padrinhos.
A digital por trás das nomeações está numa planilha eletrônica secreta, disponível apenas em
computador do Planalto. Embora
civilizada, a transição não prevê
a entrega a Lula do catálogo de
incivilidades praticadas por FHC
no balcão da fisiologia. O PT
brincará de peteca no escuro.
Lula lidará com profissionais.
Gente que sabe onde estão as cerca de 5.000 cadeiras mais cobiçáveis da República. O lote mais disputado roça a casa dos 600. Um
detalhe os torna mais atrativos
que os demais: seus ocupantes
manuseiam o talão de cheques.
Se obtiver todos os votos que as
pesquisas lhe atribuem, Lula chegará a Brasília carregado pelo
maior índice de aprovação popular que as urnas já conferiram a
alguém. Mas a sorte do governo
petista começará a ser testada no
Congresso, uma arena em que estão em jogo 594 votos -513 deputados e 81 senadores.
O PT elegeu vistosas bancadas.
Mas, sozinho, não aprova nada.
O mesmo Lula que outrora contabilizava "300 picaretas" no Congresso hoje está condenado à
composição. "Vou conversar com
todo mundo", diz. Os acertos com
Sarney e Quércia demonstram
que fala sério.
Os gestores da fisiologia tucana
dividiram os congressistas em três
grupos: o primeiro, dos "ideológicos", fez oposição radical a FHC;
o segundo, dos "temáticos", condicionou o voto à argumentação
técnica; o último grupo, apelidado de "geléia geral", concentra o
pessoal do "que é que eu levo nisso".
Compõem a "geléia", só na Câmara, algo como 150 parlamentares. Difícil aprovar emendas constitucionais sem a ajuda dessa
gente.
"Se o PT vencer as eleições e
achar que deve conversar com o
PMDB, conversaremos", dizia, na
quarta-feira, Geddel Vieira Lima.
"Mas conversas, de preferência,
públicas e transparentes, sobre teses e idéias."
É pena que FHC não faculte ao
PT o manuseio de sua planilha
secreta. Examinando-a Lula
identificaria os feudos de Geddel.
Entre eles a presidência da Cia
Docas da Bahia, entregue a Afrísio Vieira Lima, seu pai. Que tal
um debate "público e transparente" sobre "teses e idéias" que justificam a subordinação de nacos da
máquina estatal ao interesse político?
O cacique Jorge Bornhausen informa que o seu PFL, no poder
desde Cabral, ruma para a oposição. O anúncio esbarra, de novo,
na planilha confidencial de FHC.
O conteúdo não deixa dúvida
quanto à vocação da tribo que
Bornhausen imagina liderar e
que o petista José Dirceu já assedia em diálogos clandestinos.
A sanha fisiológica da nação
pefelê não poupa nem os fundões
do Estado. Abocanham-se até órgãos inservíveis como o Denocs
(Departamento Nacional de
Obras Contra a Seca). O braço
piauisense da repartição foi posto, por exemplo, a serviço do pefelista Mussa Demes. Seu afilhado é
Rubens Felippe Demes.
A planilha da fisiologia expõe
outro problema para Lula. O PL
do seu vice José Alencar está à
míngua. O desejo de ser protagonista na nova coreografia distributiva explica a guinada à esquerda da legenda da Igreja Universal.
O diabo é que, diferentemente
das novas fronteiras ideológicas a
que o PT se vê submetido, a estrutura do Estado é inelástica. No
instante em que encostar o abdômen no balcão, Lula terá dificuldades para saciar tantos e tão variados apetites. É um tipo de fome
que não se mata com paz e amor.
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