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NO PLANALTO
Seja quem for o eleito,
vai rolar a festa
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
É insuportável a normalidade que permeia a cena
política brasileira. Algo de anormal precisa suceder. Sob pena de
passar por natural o que é absurdo.
Quem não quiser perder a
compreensão do que está acontecendo deve levar em conta o
seguinte: Lula, Ciro e Serra são
prisioneiros de um paradoxo.
Eles prometem o avanço sem
chutar o atraso. Pregam o novo
abraçados ao velho.
O PT se aproximou do arcaico
por razões de "mercado". Queria
derreter o gelo de suas relações
com a alta finança. Imaginou
que um Lula domesticado seduziria o voto não-petista.
Ciro foi empurrado em direção
ao obsoleto pela legislação eleitoral. Seu partido, o PPS, é um
nanico eleitoral. Sem musculatura congressual, o candidato
entoaria na propaganda eleitoral muito pouco além de um
"meu nome é Ciro".
A falta de vocação para Enéas
justificaria companhias inusitadas, como a de Luiz Antonio
"Carandiru" Fleury. Mas não
explica acertos de Ciro com morubixabas da tribo pefelê. Esses
não lhe rendem um mísero minuto adicional na TV.
Serra renovou a aliança do
PSDB com o antiquado porque o
grão-tucanato avaliou que, sem
a ajuda do cangaço, a USP não
se manteria no Palácio do Planalto. Oito anos de poder não
ajudaram a dissipar a impressão
de que, fora do Sudeste, o "tucanosapiens" é uma criatura ruim
de voto.
De um líder se espera que fixe
padrões morais para os seus liderados. Diante das extravagantes
alianças formadas ao seu redor,
Lula, Ciro e Serra comprometem
a própria capacidade de se firmarem como lideranças éticas.
A despeito das qualidades e da
honestidade de cada um.
A atual campanha representa,
antes de tudo, um marco estético. Os candidatos decretaram o
fim da utopia de uma política altruísta, baseada nos bons sentimentos. A prática, finalmente,
derrota o ideal.
Extinguem-se os últimos antagonismos. Eliminam-se os derradeiros entrechoques. Já não há
nem o protocolar Lula versus
Quércia. O pragmatismo não se
dá mais ao luxo de moralismos e
ideologias.
O pipoqueiro e o ladrão de pipoca se confraternizam à luz do
dia. O pau de galinheiro se harmoniza com o galinheiro. Sacrifica-se o idealismo "imobilista"
em nome de um cinismo "transformador".
O Brasil, que nunca teve políticos de direita, perde também os
que se diziam de esquerda. Resta
o centrão. Amorfo, isotrópico,
inefável. É a redenção triunfal
do "realismo" a FHC. Em meio
ao surto de amnésia, já ninguém
se lembra do que escreveu, disse
ou fez.
Brasília vai se firmando como
templo de um sistema administrativo que gira em torno de privilégios, verbas e empregos. Logo
seremos pentacampeões também em fisiologia.
Tancredo teve a ventura de
morrer antes de pôr em prática a
armadilha que engendrou. Herdeiro dos acordos, Sarney hon-
rou-os gostosamente. Collor renovou-os. Itamar preservou-os.
FHC vestiu-os com traje intelectual, situando-os em algum lugar entre as duas éticas de Max
Weber, a da convicção e a da responsabilidade.
Diz-se que, eleito, o novo presidente, menos inepto que Sarney,
mais honesto que Collor, menos
transitório que Itamar, mais firme que FHC, teria autoridade
para deter a sanha fisiológica
dos aliados. Doce ilusão.
O calor de urnas recém-abertas normalmente confere ao eleito uma aparência de super-homem. Porém, ao descer das nuvens da consagração para o chão
escorregadio do dia-a-dia administrativo, o novo presidente descobre que seu poder tende a se
dissipar nos desvãos da imensa
máquina do Estado. Em poucos
meses, ele se vê como que governado pelas circunstâncias.
Sarney disse, certa vez, que "o
presidente é como um dom José
1º, acampado no Palácio de Belém, em meio ao terremoto de
Lisboa". Um terremoto que por
certo será amplificado em 2003
pelo legado de desequilíbrio econômico de FHC.
Manietado por um cenário internacional de crise que projeta
uma recessão planetária de dimensões históricas, o novo presidente será compelido a desfiar
um rosário de desculpas para as
promessas que não conseguirá
honrar. Será então apresentado
aos dissabores da impopularidade. E sentirá a faca da fisiologia
a roçar-lhe a jugular.
Devagarinho, o fisiologismo
vai deixando de ser percebido
como parte do sistema. Passa a
ser entendido como o próprio sistema. Tão integrado ao cenário
brasiliense quanto as curvas da
arquitetura de Niemeyer.
Impossível antecipar o nome
do novo gerente do velho condomínio de interesses. Mas, passado o ritual da eleição, vença Lula, Ciro ou Serra, convém chamar de volta à capital a cantora
Ivete Sangalo. Vai rolar a festa.
Ah, vai rolar.
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