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NO PLANALTO
SP revoluciona o combate à exclusão social
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Ano de 2054. A milionésima
reedição do "Novíssimo
Aurélio" acaba de sair do prelo.
Incorpora neologismos. Revê
acepções de velhas palavras.
O verbete "miserável", por
exemplo, ficou assim: "[Do lat.
miserabile] subpessoa; detrito
humano; ser antinatural, que
prolifera como rato e sonha viver
como gente".
Consagrado pelo uso, o vocábulo "humanissínio" foi finalmente
dicionarizado: "[De humanitário
+ assassínio] ato de tirar a vida
de pessoas pobres; assassinato legal; antecipação da morte de indigentes por meio de execução socialmente consentida".
As notícias sobre a atualização
do Aurélio evocam episódios
ocorridos há 50 anos. Em agosto
de 2004, rememoram agora os
jornais, surgiu em São Paulo
uma técnica inusual de combate
à exclusão social: o extermínio de
indigentes a pauladas. Ficou conhecida no exterior como "the
Brazilian revolutionary method".
Alguns historiadores fazem
menção ao remoto massacre do
Carandiru e às longínquas chacinas de Corumbiara, Vigário Geral e Candelária. Mas a maioria
dos livros identifica no método do
sarrafo a gênese dos modernos
procedimentos de supressão da
indigência.
A repulsa dos bem-nascidos em
relação aos mendigos foi ganhando contornos desabridos. Hoje, o
monumento aos matadores desconhecidos de pobres é visitado
semanalmente por legiões de admiradores. Vêm de todas as partes, para reverenciar os agressores
de 16 moradores de rua do centro
da capital paulista.
São festejados como heróis visionários. Numa era remota,
marcada pelo ocaso do humanismo, vislumbraram uma forma letal de abrandamento da poluição
urbana. Seus bustos encontram-se assentados na praça da Sé. Erigiu-os a Prefeitura de São Paulo,
em convênio com o governo do
Estado. Deu-se na seqüência de
memorável sessão realizada no
Congresso Nacional.
Em votação simbólica, precedida de amplo acordo suprapartidário, deputados e senadores injetaram no Código Penal o conceito da eliminação sem culpa.
Descriminalizado, o morticínio
da bugrada passou a ser aferido
pelo IBGE.
Compêndios econômicos contemporâneos tecem loas às vantagens mercadológicas da higienização biológica. Obras de cunho sociológico fazem a apologia
da inevitabilidade do processo.
Alguns textos recuam a tempos
imemoriais. Recordam os tempos
em que os mendigos brasileiros,
por escassos, ainda podiam ser
recebidos, com compungida fidalguia, na soleira das casas de
classe média.
Tocavam a campainha entre
uma e outra refeição. Olhos grudados no chão, rogavam pelas sobras do almoço e do jantar. Com
sorte, levavam, além do prato de
comida, peças de roupa usada.
Com o passar dos anos, a malta
cometeu a imprudência da proliferação desmedida. Não contente
em existir, passou a existir em
grandes quantidades. Tornou-se
o desnecessário levado longe demais, o etc. do processo de globalização, a ameaça ao final feliz.
As pauladas de São Paulo levaram a uma inflexão no ideal retórico da distribuição do bem-estar.
Rendido à ineficácia de suas políticas sociais, o Estado passou a
patrocinar programas de incentivo fiscal à eliminação de mendigos. Inicialmente restrito a pessoas físicas, o benefício foi estendido depois a empresas comprometidas com cotas anuais de extermínio de miseráveis.
Uma corajosa encíclica papal
legitimou, a partir de 2025, o assassinato de pobres. O texto aceita o aniquilamento como gesto
cristão. Uma forma de abreviar a
existência vã de milhões de seres
inúteis. Indivíduos que só encontram lenitivo para a sua dor no
plano celeste.
As montadoras de automóveis
passaram a oferecer à clientela
veículos com lataria e pára-choques reforçados. Moldados em liga metálica especial, possibilitam
o atropelamento de pobres sem
danos ao patrimônio.
Consumidores mais aquinhoados dão preferência a modelos
munidos de armas retráteis, postadas sob os faróis dianteiros e
lanternas traseiras. Carros mais
sofisticados têm metralhadoras
giratórias embutidas no capô.
Um luxo.
A despeito dos ditames da igreja, nem todos os miseráveis encontram a paz na morte. Decidido a evitar a superlotação do paraíso, Deus empreende rigorosa
triagem. Envia levas de excedentes às profundas.
Movido por inédita generosidade, o Diabo faculta aos novos inquilinos a inscrição em dois programas infernais. Chama-os de
"Comunidade Solidária" e "Fome Zero". Em vez de arder nas temidas labaredas, o pecador pode
optar pelo castigo da espera eterna. Um suplício ao qual já está
habituado.
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