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SATÉLITE-ESPIÃO DEIXA DE SER PRIVILÉGIO DE APLICAÇÕES MILITARES E JÁ COMEÇA
A MONITORAR A VIDA COTIDIANA DE PESSOAS COMUNS
ETERNA VIGILÂNCIA
Divulgação DigitalGlobo
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Foto do satélite QuickBird mostra ilha das Cobras (RJ), base da
Marinha; no alto, à dir., os porta-aviões São Paulo e Minas Gerais
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Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local
Se você mora em Campinas (SP) e se sua casa tem
piscina, provavelmente você já deve ter levado
um susto ao receber a visita de um vendedor de
produtos para ela. "Como você descobriu que
aqui tinha uma piscina?" -deve ter sido a primeira
pergunta que você fez.
A resposta está no céu. Uma companhia vendedora
de produtos para piscina contratou a Imagem, empresa
de tecnologia baseada em São José dos Campos (SP),
para usar imagens de satélite e descobrir onde estavam
todas as piscinas na cidade, com endereço e tudo.
O exemplo é um caso bem simples do que permitem
as tecnologias de observação da Terra, o chamado "sensoriamento remoto". E também é um exemplo didático
do que significa a sigla SIG -Sistemas de Informações
Geográficas-, hoje em dia mais conhecida pela abreviação em inglês GIS. Trata-se de combinar informações geográficas com vários dados de outras fontes
-nesse caso, o nome das ruas e o número das casas.
A idéia não é propriamente nova. Um dos melhores
exemplos de GIS surgiu na medicina, na metade do século 19. O cruzamento da ruas Broad e Cambridge, em
Londres, é um dos locais mais significativos na história
da epidemiologia. Ainda hoje está ali uma velha bomba
d'água que teve papel fundamental na epidemia de cólera que afetou Londres em 1854. Foi graças a ela e a um
mapa feito pelo médico britânico John Snow (1813-1855) que se pôde confirmar a hipótese de que o cólera
era transmitido por comida ou água contaminadas.
Snow tinha marcado em um mapa da região o endereço das vítimas da epidemia. As mortes se aglomeravam perto da bomba que servia água contaminada à
população. Retirada a alavanca que bombeava a água, a
epidemia foi debelada. O trabalho de Snow pode ser
considerado um clássico de informações geográficas.
A informação produzida para os vendedores de produtos para piscina, por seu turno, poderia ir além da
mera lista de casas. A companhia, assim como qualquer
outra empresa privada ou órgão público, poderia querer mais dados sobre as casas -sua área construída,
por exemplo. Ou cruzar essas informações com outras
eventualmente existentes sobre perfil de consumo, ou
número de telefones, ou disponibilidade de gás encanado ou televisão a cabo. Tudo isso hoje é possível.
"Nosso produto se chama inteligência geográfica.
Nosso objetivo é ajudar os clientes a resolver questões
geográficas", diz Marcos Covre, diretor técnico da Imagem. Entre essas questões podem estar problemas específicos de mercado -onde instalar um novo supermercado ou uma nova lanchonete. Ou então os problemas
podem envolver questões técnicas -onde colocar uma
antena de telefonia celular para que o sinal atinja a
maior área de cobertura possível, sem "buracos".
A Imagem é a mais tradicional empresa da área -se
isso puder ser dito de uma companhia fundada em 1986
por três pesquisadores que então faziam mestrado na
área de sensoriamento remoto do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Além de Covre, o trio era
formado por Eneas Rodrigues Brum (diretor-presidente) e Luiz Leonardi (diretor operacional).
A empresa começou lentamente, explorando o lado
operacional da tecnologia de sensoriamento. Dependiam do Inpe, o único local onde imagens de satélite
eram captadas e estudadas. A empresa começou com
90% de clientes estatais; hoje, tem 90% na iniciativa privada. E o próprio Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais está entre seus clientes ou colaboradores, além de
universidades como a USP e a Unicamp.
De olho na piscina
Fatores recentes e revolucionários na área de GIS são tanto a disponibilidade de computadores melhores, de softwares mais precisos e poderosos para trabalhar as imagens e os dados agregados,
como também as próprias imagens de satélite. Poucos
anos atrás, imagens dessa qualidade só estavam disponíveis ao Pentágono, nos EUA, e aos militares de outros
países desenvolvidos.
O americano QuickBird é o melhor exemplo de um
satélite que no auge da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética seria considerado um satélite-espião: tem resolução espacial de 61 centímetros. Isto é,
ele pode identificar objetos a partir desse tamanho, desde sua órbita a 450 km de altitude.
Os satélites tradicionais de sensoriamento remoto
com resoluções espaciais de 10 a 15 metros podem fazer
a identificação dos quarteirões de uma cidade e dos seus
principais edifícios. Mas isso é pouco para definir com
clareza o tamanho da piscina da casa. Já os mais modernos, com resolução de 1 a 5 metros, são capazes de mostrar alguns detalhes das edificações. É possível enxergar
árvores e carros individuais numa imagem dessas e, assim, medir razoavelmente bem as piscinas ou a inclinação dos telhados.
O QuickBird vai além, tanto que inicialmente criou
polêmica entre os militares americanos. Suas imagens
de todo o planeta estão à venda para quem quiser comprar. Um cliente pode querer fotos das principais bases
americanas. Basta encomendar, com apenas uma condição: a DigitalGlobe, empresa dona do satélite, não pode entregar imagens com definições menores que 82
cm, em 24 horas após a sua aquisição, sem o consentimento do governo dos EUA.
Na recente feira de material bélico LAD 2003 (Latin
America Defentech), realizada no final de abril, no Rio
de Janeiro, duas imagens feitas pelo QuickBird davam
sustos nos militares brasileiros que passavam pelo estande da Imagem. Uma mostrava em detalhe a ilha das
Cobras, base da Marinha no centro do Rio, e a vizinha
ilha Fiscal. Estão lá dois porta-aviões, São Paulo e Minas
Gerais, além de submarinos, várias fragatas e corvetas.
A imagem de satélite permitia até visualizar o antigo
contorno da fortaleza do século 18, hoje marcado por
árvores, que tomava a área mais alta da ilha antes que
ela recebesse aterros.
A outra mostrava a Base Aérea de Anápolis, localizada
em Goiás, onde ficam os obsoletos caças Mirage-3 de
defesa aérea, a serem um dia substituídos pelo vencedor
do atualmente atrasado programa F-X. Na imagem era
possível distinguir até os paióis de munição da base, o
que deixou alguns oficiais mais antigos da FAB -e menos conhecedores de tecnologia- visivelmente perplexos e contrariados.
Má sorte
A saga do QuickBird começou faz uma década. Em 1993, o Departamento de Comércio americano permitiu à empresa WorldView (hoje DigitalGlobe)
construir um satélite comercial de alta capacidade para
a época -três metros de resolução espacial. Mas o azar
perseguiu a empresa. O primeiro satélite, EarlyBird-1,
foi lançado em 1997, mas saiu da órbita quatro dias depois, devido a um problema de energia. Graças ao seguro, a empresa pôde ter verba para construir e lançar em
2000 o QuickBird-1, o qual nem mesmo conseguiu alcançar sua órbita.
Mudado o nome da empresa em setembro de 2001 para DigitalGlobe, a sorte também mudou. O QuickBird-2
já foi projetado com a revolucionária resolução de 61
cm em "modo pancromático" (uma imagem em preto-e-branco, mas mais nítida) e 2,44 metros no "modo
multiespectral" (com menor resolução, mas com mais
dados no espectro eletromagnético, nas cores azul, verde, vermelho e infravermelho próximo).
Os dois modos podem ser combinados em computador, criando imagens na resolução espacial de 61 cm e
com cores próximas ao real, capazes de deixar coronéis
apopléticos. Usando essas tecnologias, ou melhor, geotecnologias, a Imagem hoje tem entre seus principais
clientes empresas que vivem momentos dinâmicos de
transição, segundo Covre. É o caso das empresas de telefonia, ou de distribuição de eletricidade e gás, ou de algumas prefeituras que precisam de dados com urgência
e não sofrem problemas de continuidade com a mudança de governo.
A empresa tem expandido sua atuação em vários países latino-americanos e criou uma outra, a Intersat,
apenas para comercializar imagens. A Imagem tem mapeado partes do Brasil que nem mesmo órgãos governamentais ainda foram capazes de cartografar. E vai em
breve instalar uma antena própria para receber imagens da DigitalGlobe.
A era do satélite-espião na vida cotidiana de cidadãos
comuns está apenas começando.
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