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Encontro que aproximou dois gigantes da história científica nacional, Oswaldo Cruz e Adolpho Lutz, resolveu grande mistério epidemiológico no Vale do Paraíba em 1894
Nos tempos do cólera
Acervo Casa de Oswaldo Cruz/Departamento de Arquivo/Reprodução de Roberto Jesus Oscar
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Lutz (homem à esquerda) posa para fotografia na rua |
Luisa Massarani
especial para a Folha
O
Vale do Paraíba foi, há quase cem anos, em
1894, o cenário de um instigante e controverso
período da ciência brasileira. Em plena pandemia mundial do cólera, a doença eclodiu na região. Foi o que faltava para a erupção de uma disputa
científica latente: seriam algumas doenças causadas por
microrganismos? A polêmica envolveu nada menos do
que dois ícones da ciência brasileira, Adolpho Lutz
(1855-1940) e Oswaldo Cruz (1872-1917). A partir daí,
eles mantiveram uma correspondência científica nas
décadas seguintes, até a morte de Cruz.
Para a grande maioria de clínicos e médicos de então,
as diarréias que surgiram em 1893 e se alastraram pelo
Vale da Paraíba nos dois anos seguintes eram causadas
por problemas ambientais locais, não-associados a micróbios. Houve até quem sugerisse motivos pontuais,
como pêssegos verdes ou chouriços estragados, mas
Lutz e Cruz não pensavam assim. Eles uniram esforços
e provaram que a causa era o vibrião do cólera, isolado
por Robert Koch (1843-1910) uma década antes.
Um acervo inédito com cerca de 4 mil documentos de
Lutz e um diário que inclui um relato minucioso dos experimentos laboratoriais feitos na ocasião por Oswaldo
Cruz trazem, agora, nova luz ao debate que ocupou as
páginas dos jornais da época. "Os novos dados dão subsídios para entendermos melhor como se deu o processo de institucionalização da bacteriologia no Brasil,
num cenário em que a área também estava se instituindo no resto do mundo", diz o historiador Jaime Benchimol, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
Ele defende que foi o episódio às margens do Paraíba
que pôs Oswaldo Cruz em destaque. Isso colocaria em
xeque a crença usual de que a campanha contra a peste
bubônica, em 1899, teria sido o primeiro evento a atrair
a atenção para Cruz no domínio da saúde pública.
Considera-se, em geral, que o sanitarista teria adquirido sua formação mais sólida após sua estadia no Instituto Pasteur, na França, para onde se dirigiu em 1896, a fim de se especializar em microbiologia. "Ao contrário
do que muitos biógrafos de Oswaldo Cruz afirmam, ele
não era um ilustre desconhecido quando, em 1902, tornou-se diretor de Higiene [equivalente ao cargo de ministro da Saúde] e do Instituto Soroterápico Federal
(atualmente, Instituto Oswaldo Cruz)", diz Benchimol.
Ao lado da bióloga e historiadora da ciência Magali Romero Sá, também pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, ele se debruça há dois anos sobre o acervo de Lutz.
Trem de lastro
A década de 1890 começou bastante conturbada no Brasil, política e economicamente, na esteira da instauração da República em 1889. No campo
da saúde pública, vários surtos epidêmicos marcaram o
período. Em 1894, passageiros invisíveis e minúsculos
seguiram Vale do Paraíba adentro no trem de lastro,
que fazia a manutenção dos trilhos. Em novembro, começaram a circular no Rio notícias alarmantes de que
diarréias estavam afligindo muitas pessoas na região
sul-fluminense do Vale do Paraíba, próxima à fronteira
com São Paulo. Quase metade dos atingidos morria. Para verificar o que se passava, foram enviadas comissões
sanitárias de São Paulo e do Rio, ainda em novembro. O
ponto de encontro foi a localidade de Cruzeiro.
Do lado paulista, seguiu uma comitiva do Instituto
Bacteriológico, que algumas décadas depois passou a se
chamar Instituto Adolpho Lutz. Já quase um quarentão, Lutz era o diretor. Sua trajetória científica era versátil nos domínios da história natural e da biologia, incluindo clínica médica e sanitarismo.
Do Rio partiu Oswaldo Cruz, um jovem formado dois
anos antes na Faculdade de Medicina, com tese de doutorado sobre transmissão de micróbios pela água. Outros dois bacteriologistas faziam parte desse exército
brancaleônico na busca de micróbios: Eduardo Chapot
Prévost, que se tornou depois um cirurgião conhecido
por ter sido o primeiro a fazer uma operação bem-sucedida para separar duas irmãs xifópagas, e Francisco Fajardo, médico que formou Carlos Chagas e depois foi catedrático de hematologia da Faculdade de Medicina.
A viagem durou poucos dias e antes de terminar novembro os bacteriologistas já analisavam os materiais coletados em seus laboratórios. Ao longos dos meses
seguintes, novos focos do cólera foram detectados em
diversas cidades do Rio, de São Paulo e de Minas Gerais.
Em maio de 1895, a história epidemiológica das diarréias do Vale do Paraíba ainda permanecia obscura, o que aumentava a importância dessas análises laboratoriais.
Fundo de quintal
No Rio, duas instituições realizavam atividades similares e de certa forma sobrepostas, o Instituto Sanitário Federal e o Laboratório Bacteriológico, este criado pelos republicanos. Apesar disso, não tinham capacidade técnica laboratorial para realizar os testes que permitiram, posteriormente, comprovar a
relação entre o vibrião do cólera e as diarréias.
Os testes eram feitos, literalmente, em casa: em laboratórios domiciliares, à própria custa, Prévost, Fajardo e Cruz realizavam os experimentos que serviriam de suporte para as políticas de saúde pública para enfrentar o
cólera. "As epidemias de 1894-1895 revelam aspectos
surpreendentes da história da saúde pública no período", afirma Romero Sá. Em primeiro lugar, ficou clara a superioridade da aparelhagem sanitária de São Paulo, em particular no tocante a equipamentos laboratoriais,
em relação ao do governo federal naquele momento.
"Além disso, no âmbito do governo federal, observou-se uma enorme desproporção entre o peso que as elites dirigentes deram aos diagnósticos formulados pelos jovens bacteriologistas do Rio de Janeiro e as condições materiais em que foram realizados", afirma Benchimol. "De dentro de pequenos laboratórios mantidos
em residências particulares, saíram pareceres que repercutiram dentro e fora do país, fundamentaram
ações onerosas, atropelaram interesses poderosos e
atingiram o cotidiano de multidões." Mas ele alerta: "É
importante ressaltar que o grupo não surgiu em cena
coeso, pré-formado, com consciência de suas metas".
Após o encontro no Vale do Paraíba, os três bacteriologistas do Rio mantiveram contato estreito com Lutz,
com troca intensa de correspondência. Juntos lutaram
contra médicos e clínicos que, na maioria, achavam que
as diarréias não eram causadas por microrganismos.
As controvérsias sobre a correlação entre as diarréias
e o vibrião do cólera saíram do âmbito acadêmico e
atingiram a grande imprensa. No Rio de Janeiro, "A Gazeta de Noticias" capitaneou a reação ao diagnóstico de
cólera. "O Paiz" foi o porta-voz da ação federal e de seus
simpatizantes. O jornal publicou até mesmo as complexas análises de Fajardo, Prévost, Cruz e Lutz.
O comportamento da imprensa carioca nessa questão
foi alvo de comentários irônicos de Arlequino, cronista
de São Paulo, em artigo publicado na "Revista Illustrada", com o título sugestivo de "O Vírgula", uma alusão à
morfologia do vibrião do cólera, que ele chama de "micróbio ortográfico": "Quem tem ultrapassado os limites
da conveniência são os jornais do Rio. (...) É um assombro o que eles têm feito de grande com o infinitamente
pequeno! Há jornal que lhe chama ponto de interrogação. Outro diz que este vírgula tem espalhado pontos de
admiração em todos os espíritos. (...) Todos têm querido pôr-lhe o ponto final, mas os tipógrafos arrumam-lhe dois pontos e, logicamente, a coisa continua".
Para Arlequino, o micróbio "[havia assumido" nas
nossas imaginações a estatura de um elefante com a catadura de um tigre". E segue: "E ninguém o viu, a não
ser o dr. Lutz, e esse mesmo através das lentes de um
microscópio. Que faria se o vissem! Então é que o pânico seria medonho". Ele finaliza assim: "Nós aqui [em
São Paulo", pelo menos no jornalismo, nunca tivemos
medo de vírgulas, nem destas nem de outras. O que às
vezes nos dá um pouco de susto são as reticências... E
com estas termino."
Segundo relato da feminista e bióloga Bertha Lutz, filha de Lutz, o que mais enfureceu o pai foi um evento ocorrido no carnaval de 1895 em São Paulo, em que ele foi ridicularizado em público.
Em busca de micróbios
Do outro lado do oceano, a relação entre diarréias e micróbios também era controversa. Apesar de Robert Koch ter isolado e descrito o
bacilo do cólera em 1883, o debate continuava. O principal adversário de Koch na Europa era Max von Pettenkofer (1818-1901), um dos mais respeitados nomes da
área sanitária na Alemanha. Ele admitia que o cólera
fosse causado por um bacilo, mas acreditava que o micróbio não fosse o único responsável. Afinal, como explicar que certas localidades e indivíduos eram poupados?
Pettenkofer defendia que, além do germe, eram precisas determinadas condições relativas ao lugar, ao clima
e ao indivíduo, para que ocorresse a epidemia. As variáveis sazonais e locais agiriam sobre o germe, que sofreria uma transformação e se tornaria infeccioso.
Pettenkofer estava tão convicto de seu ponto de vista
que fez uma experiência que entrou para a história: bebeu um copo concentrado de bacilos cultivados pelo assistente de Koch a partir de micróbios retirados das fezes de um moribundo. O sanitarista alemão teve apenas
uma diarréia suave. Vários cientistas repetiram o experimento, mas nem todos tiveram a mesma sorte. No
Instituto Pasteur, um voluntário quase morreu.
"A microbiologia naquele momento não era ainda
bem compreendida", diz Benchimol. "Além disso, há
várias outras cepas de vibriões que morfologicamente
são muito parecidas com o chamado vibrião do cólera,
mas não causam a doença", explica. "Tecnicamente, era
difícil, ainda, fazer a distinção entre essas diferentes cepas", afirma o pesquisador. É naquele momento que
começa a surgir a noção de portador são, ou seja, que
hospeda o agente, mas não desenvolve a doença.
Causadas por microrganismos ou não, as disenterias
eram, sem dúvida, um fato. E o temor de que o mal se
alastrasse para as cidades maiores, como Rio, São Paulo
e Belo Horizonte, fez com que o trânsito ferroviário fosse interrompido em vários trechos entre esses centros,
em novembro de 1894. No início de dezembro os trens
voltaram a rodar. Foi instaurada, então, uma política
sanitária complexa, levada a cabo por inspetores sanitários, para evitar que o germe do cólera se difundisse. O
componente básico da defesa eram as desinfecções pelo
vapor, pelo calor e, sobretudo, por líquidos germicidas.
"Os anos 1890 marcaram o auge da mania por agentes
físicos e substâncias capazes de destruir micróbios fora
e dentro das pessoas e até mesmo de intoxicar ou matar
as pessoas que o tomassem", diz Benchimol. "Mas as
populações aterrorizadas com a aproximação do cólera
pediam, com insistência, essas substâncias."
No começo de 1895, o cólera cedeu e o número de casos caiu até que se considerou a doença sob controle.
Do fundo do baú
O diário de Cruz referente a 1893-1895 é mantido guardado na Casa de Oswaldo Cruz. Já o acervo de Lutz foi reunido por sua filha Bertha Lutz. São
cerca de 4 mil documentos, incluindo cartas, diários, relatórios, cadernos de anotações científicas e fotos familiares. Também contém vários artigos de Lutz publicados no exterior, principalmente em alemão, inéditos
em português.
Bertha, que deu continuidade a uma das linhas de
pesquisa de Lutz com anfíbios, pretendia publicar a
obra completa do pai, mas nunca viu seu sonho realizado. Depois que ela morreu, em 1976, a família enviou o
acervo para o laboratório em que ela trabalhava, no
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ficou esquecido por duas décadas.
Agora sob a guarda de Maria José Velloso, chefe do
Arquivo do Museu Nacional, o acervo começou a ser
organizado, digitalizado, traduzido e analisado há dois
anos, pela equipe encabeçada por Benchimol e Romero
Sá. "Nossa principal dificuldade é conseguir verba suficiente que pague bons tradutores do alemão e permita
uma revisão técnica adequada", afirma Romero Sá.
Os pesquisadores estão finalizando um primeiro volume, que incluirá uma versão comentada de parte do acervo, a ser editado pela editora da Fiocruz. Outros
dois volumes estão em preparação.
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