|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Economia cósmica
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Em sua essência, a ciência busca organizar a nossa percepção dos fenômenos naturais. Por meio dessa busca, encontramos os mecanismos operacionais da natureza, chamados de leis. Elas descrevem, de modo econômico e preciso,
como as coisas ocorrem no cosmo, do
interior do núcleo atômico aos confins
do Universo. Portanto, pode-se dizer que
a essência da ciência tem sido a busca
dessas leis naturais, o código cósmico.
Quatrocentos anos de ciência revelaram algumas dessas leis. Talvez a mais
famosa seja a lei da conservação de energia, que afirma que a quantidade de
energia antes e depois de algum evento é
a mesma. Ela pode se transformar no decorrer do evento, mas jamais desaparece.
Por exemplo, um carro usa a energia química armazenada na gasolina para impulsionar o seu motor que, por sua vez,
faz girar as suas rodas. Existe uma perda
de energia devido à fricção interna ao
motor e nas rodas, mas a quantidade total de energia, incluindo a perda devido à
fricção, deve ser a mesma. Essa lei, assim
como todas as outras, é testada e confirmada quantitativamente todos os dias.
Talvez a questão mais básica em ciência seja: "Por que essa leis e não outras?"
Como foi decidido que o Universo devia
operar desse jeito e não de outro? Claro,
uma resposta bem mais antiga do que a
ciência é que Deus (ou os deuses, dependendo da crença de cada um) criou o
Universo e as leis que regem o comportamento das coisas. Essa resposta, por
mais popular que seja, não é muito interessante do ponto de vista científico, já
que a missão da ciência é proporcionar
explicações racionais do funcionamento
do cosmo sem o uso de argumentos sobrenaturais. Idealmente, gostaríamos de
responder a essa pergunta usando a própria ciência.
Esse problema se torna mais complexo
ainda quando tentamos respondê-lo
junto com uma outra questão complicada, a da origem do Universo. Segundo
santo Agostinho, Deus criou o tempo
junto com o cosmo. Portanto, a pergunta
"O que estava acontecendo antes de o
mundo existir?" não faz sentido, já que o
tempo não existia antes do mundo. A relação com a origem das leis da natureza é
imediata: mesmo se conseguirmos desenvolver um modelo matemático que
explique a origem do Universo, esse modelo será necessariamente baseado nas
leis da física. Ou seja, a pergunta "Como
o mundo surgiu?" na verdade deveria ser
"Como surgiram as leis da física?". As
leis vêm antes dos modelos.
Mas, se as leis vêm antes dos modelos,
o que vem antes das leis? Racionalmente,
só existe uma resposta: os princípios. Pegue um dicionário e procure pela definição de "princípio". A primeira é: "Fonte
primária, origem, ou causa de algo"; a segunda: "Uma tendência natural ou original"; a terceira: "Uma verdade fundamental ou força motivadora, donde outras se baseiam" (fonte: "Webster's New
World Dictionary", 3rd College Edition).
Ou seja, por trás das leis deve haver algum princípio fundamental, que é capaz
de originá-las. A questão é, portanto, que
princípio é esse.
Para responder a essa questão, temos
de examinar a história cósmica. Segundo
a cosmologia moderna, o cosmo começou simples, com a matéria desorganizada, constituída apenas de seus componentes básicos, as partículas elementares. Com o passar do tempo, a matéria
passou a se organizar de forma cada vez
mais complexa: os quarks formaram
prótons e nêutrons, os prótons e nêutrons formaram núcleos atômicos, os
elétrons se juntaram aos prótons para
formar átomos.
Esses átomos, sob a ação da gravidade,
formaram estrelas, que formaram outros
elementos químicos e moléculas mais
complexas. E essas moléculas, ao menos
aqui na Terra, formaram seres vivos
mais elementares e, eventualmente, seres humanos, capazes de refletir sobre as
suas próprias origens. A história cósmica
é a história da complexificação gradual
das formas materiais. Qual o seu princípio operativo? A economia. A natureza
sempre opta pelo caminho menos custoso. A agregação da matéria responde a
esse princípio. As próprias leis naturais,
acho eu, são consequência desse princípio. E de onde vem esse princípio? De si
próprio. Sem ele, seria impossível decidir
qual a forma material mais econômica e
eficiente. E o caos reinaria eternamente.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: + ciência: Nos tempos do cólera Próximo Texto: Ciência em Dia - Marcelo Leite: Mãe natureza, natureza madrasta Índice
|