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Ciência em Dia
Marcelo Leite
editor de Ciência
A reflexão sobre biologia pode ferir de
morte um modo de pensar que enxerga propósitos na origem de tudo, dos
dentes de siso à homossexualidade, como se a natureza tivesse clarividência sobre cada detalhe de suas obras. Ora, um
mundo constituído segundo esse princípio não deveria ter defeitos, e todo mundo sabe que o mundo está cheio deles.
Entre as zilhões de coisas que podem
dar errado está a troca de apenas duas letras no parco DNA das mitocôndrias. Essa foi a origem da desgraça para um homem de 28 anos, cuja história veio narrada -naquela prosa anêmica dos cientistas- na edição de 22 de agosto da revista
"New England Journal of Medicine"
(www.nejm.org). Seria quase ofensivo
falar em propósito, aqui, diante das limitações impostas à vida desse jovem (como não poder dar mais que alguns passos sem cair em cansaço profundo).
Mitocôndrias são organelas celulares,
órgãos minúsculos que ajudam as células a produzir energia. São em geral representadas com o formato de bastonetes dotados de uma cavidade em ziguezague. Segundo uma teoria cada vez
mais aceita (chamada de endossimbiose), são antigas bactérias que, em algum
ponto dos bilhões de anos de evolução
da vida sobre a Terra, se associaram com
outras células e foram por elas "engolidas". Um dos indícios nesse sentido é o
fato de possuírem DNA próprio
(mtDNA, ou DNA mitocondrial), que
não se mistura com o DNA do genoma
propriamente dito, aquele contido nos
cromossomos do núcleo celular.
Talvez você lembre das aulas do secundário que as mitocôndrias são herdadas
apenas por parte de mãe (os cromossomos, por seu turno, são recebidos um do
pai e um da mãe, formando pares -23
deles, no caso de seres humanos). Isso
acontece porque as mitocôndrias dos espermatozóides são destruídas por proteínas do óvulo logo depois de penetrar
no gameta feminino.
Há exceções para essa regra, e o jovem
mencionado acima é uma delas. Ele só
tem mitocôndrias "com defeito" (com
duas letras trocadas no código de DNA)
nas células musculares. Ao comparar esse mtDNA muscular com o de outros tecidos do paciente, como sangue, raízes
de cabelo e pele, e também com o
mtDNA de seu pai e de sua mãe, Marianne Schwartz e John Vissing, do Rigshospitaler de Copenhague (Dinamarca),
descobriram que tinham vindo só do pai
as mitocôndrias incapazes de dar às fibras musculares a energia de que necessitavam, no momento do exercício físico.
Além de contradizer a regra de que todas as mitocôndrias de uma pessoa provêm do óvulo materno, esse mtDNA suscita a pergunta: por que, afinal, ele se disseminou pelos músculos do paciente, se
tudo indica que provém de poucas e raras mitocôndrias paternas que sobreviveram ao patrulhamento das proteínas
do óvulo? As desvantagens para a pessoa
afetada são óbvias, de resto.
O palpite de Schwartz e Vissing, que
eles próprios assinalam ser controverso,
é que as duas mutações representem
uma vantagem replicativa para a própria
mitocôndria. Eles supõem que elas de algum modo abreviem o tempo de produção das mitocôndrias com defeito, em
comparação com o das normais, de modo que sua "população" aumenta.
Parece evidente que se trata de um resultado (do acaso), e não da realização de
um propósito definido. Para o rapaz de
28 anos, a natureza foi mais madrasta do
que mãe. Um despropósito, enfim
-não fosse essa idéia também uma espécie de contradição em termos.
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