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Micro/Macro
A ciência e a guerra
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Arquimedes, o grande inventor e matemático grego, ajudou ao seu patrono, o rei Hiero de Siracusa, a criar máquinas de guerra que detiveram vários
avanços dos poderosos exércitos romanos. Diz-se até, em meio a relatos legendários de origem duvidosa, que ele queimou toda uma armada de navios usando
espelhos côncavos gigantescos que focavam a luz do sol. Se não espelhos, ele certamente desenvolveu catapultas as mais
variadas e outros instrumentos capazes
de lançar bólidos a grandes distâncias.
Isso, quase três séculos antes de Cristo. Já
estava selado, desde então, o pacto entre
a ciência e a guerra. Passados mais de
dois mil anos, cá estamos nós, nos defrontando com a ameaça de novos horrores, nascidos dessa inevitável aliança.
Em seu livro "Armas, Germes e Aço", o
americano Jared Diamond argumenta
convincentemente que o expansionismo
europeu se deu, principalmente, devido
à detenção de tecnologias de guerra desconhecidas de outras culturas. Essas não
envolviam apenas mosquetes e canhões,
mas doenças contagiosas que dizimaram
cidades e vilarejos inteiros antes da chegada dos canhões. As populações locais
não tinham os anticorpos necessários
para combatê-las.
Os mesmos princípios desenvolvidos
por Arquimedes e por conquistadores
europeus ainda estão em uso: se não são
catapultas, são mísseis carregando explosivos de grande poder destrutivo, nucleares ou não, ou agentes biológicos e
químicos contra os quais não temos defesa. Os países que detêm o controle político são aqueles com as armas mais efetivas, os cinco membros permanentes do
Conselho de Segurança da ONU. Não
por coincidência, estes países são também os que sustentam maior atividade
de pesquisa científica. As exceções são
Japão e Alemanha.
Essa aliança entre poder e ciência é inevitável. Como no mito de Prometeu, são
os cientistas que roubam o fogo dos deuses, o conhecimento que pode nos tornar
tão poderosos quanto eles. De fato, através da história, vários líderes políticos
que detinham (e detêm) o controle de
poderosas armas e exércitos tinham a
sua visão um tanto embaçada pelo poder, se considerando às vezes como divindades, acima das deliberações do resto dos homens. Eles desfilavam (e desfilam) pelo planeta exibindo as suas armas
a tiracolo, como troféus.
A ciência, muitas vezes, acaba sendo
vista como a culpada disso tudo. "São os
cientistas os responsáveis por essas armas, são eles os monstros, manipulados
pelos políticos como marionetes", dizem
os descontentes. É contra essa visão da
ciência e dos cientistas que escrevo hoje.
Em primeiro lugar, a ciência em si não
cria ou destrói. Somos nós os criadores e
destruidores. Somos nós que decidimos
o que fazer com as nossas invenções. Ponho criação e destruição lado a lado pois
essas duas facetas da ciência são inseparáveis. O que seria da vida moderna sem
antibióticos, tecnologias digitais, aviões,
carros e tanto mais?
Esquecemos também que somos nós
que elegemos os políticos que fazem uso
de armas de destruição. Claro, existem
exceções, como no caso de ditadores que
conquistam o poder à força. Saddam
Hussein usou armas químicas sobre os
curdos. Mussolini bombardeou populações civis na Etiópia. Hitler, Stálin, Mao,
nem se fala. Exemplos não faltam. Mas a
verdade é que em democracias também
não. Truman autorizou o uso das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Ironicamente, são os americanos, cujos
líderes políticos se consideram a polícia
do mundo, os que detêm as armas de
destruição mais poderosas. E que já as
usaram. A decisão do uso ou não de armas de destruição não é tomada por
cientistas, mas por políticos. E o ato em si
cai nas mãos dos militares.
Esses argumentos não exoneram os
cientistas de sua cumplicidade histórica.
Seu dever civil é, a meu ver, melhorar as
condições de vida da humanidade. Desse
pacto inevitavelmente nascem novas tecnologias e novas armas. Não é com a
ciência que devemos nos preocupar, mas
com a imaturidade do homem, cientista
ou não, que não sabe como lidar com o
poder que vem roubando dos deuses.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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