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Ciência em Dia
O esforço de guerra da biotecnologia
Marcelo Leite
editor de Ciência
A mobilização da comunidade biotecnológica/biomédica dos Estados
Unidos depois do 11 de Setembro e do
pânico do antraz postal deu frutos, e dos
gordos: um orçamento de pesquisa de
US$ 27,2 bilhões (ou a bagatela de mais
de R$ 95 bilhões ao câmbio de R$ 3,50
por dólar) só para o maior financiador
de pesquisas biomédicas, os NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA).
Chega a ser acabrunhante a comparação com a realidade da pesquisa -qualquer pesquisa, toda ela- no Brasil. Mesmo depois de poupado pelo governo Lula no corte de gastos, o Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT) permaneceu com a soma de R$ 2,1 bilhões para
gastar em 2003, ou seja, menos de 1/40 do
que foi posto à disposição dos NIH.
A palavra-chave para entender a prodigalidade do governo norte-americano
com seus pesquisadores no campo da
tecnociência biológica é "bioterrorismo". Pronunciada abertamente ou não,
ela estava na cabeça de todos quando se
decidiu conceder aos NIH US$ 3,79 bilhões a mais que em 2002, um aumento
significativo de 16,2%. Foi decidido pelo
Congresso, que deu ao setor biomédico
somente US$ 10 milhões a menos do que
havia sido solicitado na proposta do presidente George W. Bush.
O melhor indício dessa inclinação militar é o aumento ainda mais significativo,
em termos percentuais, obtido por um
dos braços dos NIH mais diretamente
envolvidos na pesquisa de métodos e antídotos para enfrentar uma possível
guerra biológica, o Niaid (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas,
na abreviação em língua inglesa). Foi um
avanço de 50% sobre os US$ 2,5 bilhões
de sua dotação em 2002, passando neste
ano a US$ 3,7 bilhões.
"Podemos todos declarar vitória nessa
notável campanha de cinco anos", disse
à newsletter "The Scientist" (www.the-scientist.com) Bill Brinkley, da Sociedade Americana de Bioquímica e Biologia
Molecular e do Baylor College of Medicine (que fica em Houston, Texas, Estado
que já foi governado por Bush).
Como já foi comentado neste espaço,
em 1º de dezembro do ano passado, tal
acréscimo de verbas governamentais
vem bem a calhar para um setor em crise. Basta repetir o dado então mencionado da reportagem de Peg Brickley na
mesma "The Scientist": quatro lançamentos de empresas biotecnológicas
amealharam US$ 26 milhões em 2002,
contra US$ 110 milhões que haviam sido
levantados por dez companhias em 2001.
É muito difícil separar, hoje em dia, pelo menos no campo da genômica e da
engenharia genética, o que seja aplicação
industrial do que seja pesquisa básica ou
acadêmica -sobretudo nos EUA. Países
como o Brasil penam justamente para
promover essa integração entre iniciativa privada e iniciativa científica, como fica evidente na monomania em que se
transformou o lema da inovação, mas
em países desenvolvidos ela é a regra.
Mais do que em qualquer outro ramo
de pesquisa, a comunhão de interesses
que ora se observa entre pesquisadores
que viram empresários ou capitalistas
com diplomas e prêmios de cientistas representa a essência do que se costuma
chamar de tecnociência: a pesquisa movida não mais (só) por hipóteses, mas
pela perspectiva de aplicação e lucro.
Uma forma mais educada de pôr as
coisas seria dizer que a aplicação e o lucro potencial têm um peso cada vez
maior na própria formulação das hipóteses científicas. Ou que uma escolha esperta do objeto de pesquisa pode amplificar um bocado a generosidade das burras do governo.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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