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Micro/Macro
Cosmitologia
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
É bom começar explicando que o título é esse mesmo, e não "Cosmetologia", como alguns poderiam imaginar.
Sei que misturar ciência e mitologia deve
ser feito com cuidado, e um ensaio curto
não é o lugar mais indicado para tal. De
todo modo, meu intuito é provocar a reflexão neste domingo dedicado ao passado. Algumas das perguntas feitas hoje
por cosmólogos, aqueles físicos que estudam a origem e as propriedades do Universo, são bem mais antigas do que a
própria ciência. A mais importante, a
que poderia ser chamada de "mãe de todas as perguntas", é, claro, a origem de
tudo: como surgiu o mundo?
Todas as culturas tentaram, de algum
modo, responder a esse grande mistério.
As respostas, chamadas de mitos de criação, são de uma riqueza impressionante,
narrativas que tentam traduzir como o
absoluto virou relativo, como o uno virou muitos. Por exemplo, para os maoris
da Nova Zelândia, tudo veio do nada absoluto, sem a intervenção de uma divindade. O cosmo apareceu espontaneamente, uma flutuação surgida do vazio.
Um mito taoísta diz que no início existia o caos e que do caos surgiu a ordem, e
da ordem condensou-se a terra, como
uma gota d'água nascendo de uma nuvem carregada de umidade. Já a narrativa do Antigo Testamento descreve a
criação como resultado da vontade divina: "Deus disse "Faça-se a luz" ".
Um estudo da cosmologia do século 20
mostra que algumas das idéias que apareceram em mitos de criação reaparecem sob o jargão científico. Não, o Big
Bang não tem a ver com o Gênese: a luz
descrita na Bíblia não é a explosão do
evento que marcou o início da história
cósmica. O Big Bang não foi uma explosão como é comum imaginar, uma bomba que explode e espalha detritos ao redor. Mais ainda, uma bomba pressupõe
alguém para detoná-la, o que certamente
não é o caso com modelos cosmológicos.
O ponto de encontro entre as teorias
modernas e os mitos é o pressuposto de
que a diversidade que observamos na
natureza tem sua origem em um único
princípio. No caso dos mitos, o princípio
é uma realidade absoluta de onde surge
tudo, seja ela Deus, os deuses, o nada ou
o caos primordial. Já as teorias modernas
sustentam que, no início, as quatro forças fundamentais que regem o cosmo
(gravidade, eletromagnetismo e forças
nucleares forte e fraca) estavam unificadas numa única, o campo unificado.
O que se sabe sobre esse campo unificado? Não muito. Einstein passou décadas tentando desvendar suas propriedades. Centenas de físicos teóricos dedicam
suas carreiras atrás do mesmo objetivo.
Existem indicações experimentais de
que, de fato, as forças começam a se
comportar de modo semelhante em altas
energias. Por exemplo, as forças eletromagnética e nuclear fraca funcionam como uma só nas energias obtidas em colisores de partículas, máquinas que aceleram partículas a velocidades próximas à
da luz. Mas essas indicações estão longe
de ser uma confirmação de que o campo
unificado existe. Será que a física teórica
também está fabricando um mito?
O vencedor do Prêmio Nobel Steven
Weinberg, um dos físicos teóricos mais
influentes do mundo, famoso por sua
posição ultra-reducionista, publicou um
livro intitulado "Sonhos de uma Teoria
Final". Veja bem, sonhos. Nele, ao se referir à busca por uma teoria unificada,
Weinberg escreve: "Nós temos de supor
que teremos sucesso. Caso contrário,
certamente falharemos".
É um ponto fundamental. A teoria do
campo unificado poderá vir um dia a ser
descoberta. Ou ela pode ser um Cálice do
Graal, mitologia. Nesse caso, seria como
uma montanha mágica, cujos contornos
podemos ver na distância, encobertos
por brumas. Para chegar até ela, temos
de desbravar território desconhecido.
A exploração desse território é que gera a nova ciência. Isso ocorre mesmo se
montanha alguma existir no final do caminho, mesmo que ela seja uma miragem. O poder de um mito não está na sua
veracidade, mas na sua credibilidade. Ele
sustenta a criatividade científica, alimentando a coragem de nos aventurarmos
por terras inteiramente desconhecidas.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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