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Micro/Macro
Metafísica e cosmologia
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Metafísica e cosmologia? Será que
essas duas palavras deveriam estar
juntas no mesmo título? Afinal, qualquer
pessoa que estudou um pouco de ciência
na escola sabe que ciência e metafísica
não se misturam. O nome metafísica,
historicamente, surgiu nas primeiras coleções da obra de Aristóteles, designando
o assunto que ele tratou após a física.
No dicionário, metafísica designa o ramo da filosofia que busca compreender a
natureza do ser e da realidade (ontologia) e a origem e a estrutura do Universo
(cosmologia). No uso popular, é qualquer filosofia especulativa, esotérica ou
mística, o que vai "além" da física.
Certas teorias da cosmologia moderna
misturam de fato física e metafísica. Isso,
na minha opinião, é extremamente perigoso. E olha que minha pesquisa é, em
grande parte, centrada em questões cosmológicas. A cosmologia, como ela é entendida no meio científico, é a parte da física (e não da metafísica) que estuda a estrutura e as propriedades do Universo.
Sendo parte da física, ela deve tentar descrever o Universo através de modelos
matemáticos quantitativos que possam
ser testados através de observações.
Esse ponto é essencial: uma teoria física
só é científica se ela puder ser testada
quantitativamente. Caso contrário, torna-se especulação filosófica que, apesar
de extremamente importante para o conhecimento, não é ciência. É metafísica.
O problema é legitimidade. A fase moderna da cosmologia começou em 1917,
quando Einstein aplicou a sua então recente Teoria da Relatividade Geral para
calcular a geometria do Universo. Segundo a teoria, se conhecemos a quantidade total de matéria (e energia) no Universo, podemos então determinar a sua
geometria. Einstein, sendo um herdeiro
da tradição platônica e não tendo grande
evidência observacional em contrário,
supôs que o Universo fosse estático (não
muda no tempo) e esférico.
Seguiram-se décadas de especulação
cosmológica, em que vários modelos foram propostos, baseados mais em intuição e preconceitos do que em observações. Claro, essa especulação toda não
gerou uma reputação muito invejável
para o trabalho dos cosmólogos. Faltavam dados observacionais que pudessem testar modelos, eliminando alguns e
confirmando outros. Mas, ao menos, os
modelos propostos podiam ser testados.
A situação começou a mudar em 1965,
quando se descobriram os primeiros sinais da radiação cósmica de fundo, um
fóssil de quando o Universo tinha apenas
300 mil anos, previsto pelo modelo do
Big Bang. De lá para cá, a cosmologia ganhou cada vez mais legitimidade, devido
a uma série de descobertas e observações, incluindo algumas que detalham as
propriedades dessa radiação cósmica. A
cosmologia entrou em sua maioridade.
Especulações são postas à prova.
Essa legitimidade é extremamente importante, pois coloca a cosmologia em pé
de igualdade com outras áreas da física,
como a física atômica ou a hidrodinâmica. Infelizmente, na última década a cosmologia voltou a ser inundada por especulações intestáveis e, portanto, não
científicas. Por exemplo, a discussão da
existência de infinitos universos, inclusive com cópias de cada um de nós.
O argumento, filosoficamente, é trivial:
em um Universo infinito tudo é possível.
Nós vivemos em uma bolha com um raio
de 14 bilhões de anos-luz, a distância que
a luz viajou desde o Big Bang. Segundo o
argumento, além de nossa bolha existem
infinitas outras. O leitor que conhece o
conto "A Biblioteca de Babel", de Jorge
Luis Borges, sem dúvida já reconheceu
paralelos (a biblioteca reúne todos os livros possíveis, escritos e não escritos.)
O problema é que essa idéia é baseada
numa suposição errônea: que o Universo
é infinito. O que podemos medir do Universo é limitado pela bolha de 14 bilhões
de anos-luz. Nela vemos um universo
com geometria plana. Mas os metacosmólogos dão um passo além, supondo
que essa é a mesma geometria do resto
do Universo, infinitamente plano. E isso
é algo que não podemos medir: vivemos
em uma bolha e podemos apenas medir
o que existe nela. O resto é especulação
metafísica. Divertida, mas não científica.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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