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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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Ciência em Dia

Síndrome da China

Marcelo Leite
editor de Ciência

A China, com seu 1,3 bilhão de habitantes e uma economia que cresce a uma média de 8% anuais, monopoliza as atenções dos investidores internacionais. Os Estados Unidos, por exemplo, não se pejam de distinguir a ditadura chinesa como parceiro preferencial de comércio, embora o regime asiático seja campeão de violações a direitos humanos, com execuções tão sumárias quanto as três recentes em Cuba (com muita justiça execrada por tal barbaridade). Mas há mais coisas entre a atratividade do mercado chinês e sua sustentabilidade do que pode vislumbrar a miopia da finança globalizada.
Entre os adeptos de uma visão economicista do mundo, é hábito chamar esses esqueletos invisíveis de externalidades. Para simplificar: coisas que podem ter impacto futuro na economia mas não são computadas por seus agentes no presente. Exemplo: o passivo ambiental deixado por décadas e décadas de uma industrialização bruta, à maneira soviética.
O custo de seu saneamento decerto não está sendo incluído nas expectativas de rentabilidade. Como avaliar, em dólares, o custo de até 900 mil mortes por ano por doenças pulmonares causadas por poluição do ar? O fato de não ser trivial acordar um valor para essas vidas não significa que não tenham valor algum.
Perto de quase 1 milhão de óbitos por poluição do ar, parecem café pequeno duas ou três centenas de chineses mortos com a pneumonia asiática (ou Sars, síndrome respiratória aguda grave, na abreviação em língua inglesa). Uma coisa não teria nada a ver com a outra, à primeira vista, e não só pelo viés da quantidade. Afinal, o primeiro flagelo (poluição) é fruto direto das escolhas do Estado chinês, enquanto a Sars teria causa natural.
A causa natural seriam transformações ainda mal compreendidas de um coronavírus, parasita comum em animais, mas que em seres humanos no máximo andava associado com resfriados. Agora que um dos coronavírus especializados em animais encontrou a via para infectar humanos, provoca uma pneumonia atípica com letalidade da ordem de 5%.
Constitui um equívoco, porém, aceitar a tese de que a propagação epidêmica da Sars seja "natural". A migração do vírus entre espécies, talvez, mas não a avenida aberta para ele na Província de Guangdong a partir de novembro, que a conduziu a Hong Kong e, daí, a boa parte da Ásia. Essa rota desimpedida foi alargada, pela omissão da administração chinesa.
Seu comportamento desde que se iniciou o surto se assemelha a um compêndio de medidas totalitárias. Primeiro, esconder a ocorrência de uma epidemia, tanto para o público interno quanto para o externo. Medidas precoces e cruciais de contenção deixaram de ser tomadas.
Depois, escamotear dados e impedir o acesso de especialistas da OMS (Organização Mundial da Saúde) aos focos de surto. Em seguida, liberar os dados e o acesso por etapas, na tentativa de diluir o impacto das revelações sobre números de casos e de mortes, além da situação dos hospitais militares. Em todas essas ações, os imperativos de saúde pública pareciam sempre vir em segundo lugar.
O resultado está aí para todos verem: milhares de pessoas em quarentena forçada em Pequim e Hong Kong, pânico em dezenas de cidades asiáticas, desgraça para o turismo em Toronto, queda de 0,3 a 0,9 ponto percentual no crescimento da economia chinesa em 2003 e 2004.
É externalidade para ninguém pôr defeito, e não é culpa (só) do coronavírus, mas sim de parasitas de outra e pior espécie, para os quais os tais mercados fizeram vistas grossas anos a fio.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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