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Ciência em Dia
Síndrome da China
Marcelo Leite
editor de Ciência
A China, com seu 1,3 bilhão de habitantes e uma economia que cresce a
uma média de 8% anuais, monopoliza as
atenções dos investidores internacionais. Os Estados Unidos, por exemplo,
não se pejam de distinguir a ditadura
chinesa como parceiro preferencial de
comércio, embora o regime asiático seja
campeão de violações a direitos humanos, com execuções tão sumárias quanto
as três recentes em Cuba (com muita justiça execrada por tal barbaridade). Mas
há mais coisas entre a atratividade do
mercado chinês e sua sustentabilidade
do que pode vislumbrar a miopia da finança globalizada.
Entre os adeptos de uma visão economicista do mundo, é hábito chamar esses
esqueletos invisíveis de externalidades.
Para simplificar: coisas que podem ter
impacto futuro na economia mas não
são computadas por seus agentes no presente. Exemplo: o passivo ambiental deixado por décadas e décadas de uma industrialização bruta, à maneira soviética.
O custo de seu saneamento decerto
não está sendo incluído nas expectativas
de rentabilidade. Como avaliar, em dólares, o custo de até 900 mil mortes por ano
por doenças pulmonares causadas por
poluição do ar? O fato de não ser trivial
acordar um valor para essas vidas não
significa que não tenham valor algum.
Perto de quase 1 milhão de óbitos por
poluição do ar, parecem café pequeno
duas ou três centenas de chineses mortos
com a pneumonia asiática (ou Sars, síndrome respiratória aguda grave, na abreviação em língua inglesa). Uma coisa não
teria nada a ver com a outra, à primeira
vista, e não só pelo viés da quantidade.
Afinal, o primeiro flagelo (poluição) é
fruto direto das escolhas do Estado chinês, enquanto a Sars teria causa natural.
A causa natural seriam transformações
ainda mal compreendidas de um coronavírus, parasita comum em animais,
mas que em seres humanos no máximo
andava associado com resfriados. Agora
que um dos coronavírus especializados
em animais encontrou a via para infectar
humanos, provoca uma pneumonia atípica com letalidade da ordem de 5%.
Constitui um equívoco, porém, aceitar
a tese de que a propagação epidêmica da
Sars seja "natural". A migração do vírus
entre espécies, talvez, mas não a avenida
aberta para ele na Província de Guangdong a partir de novembro, que a conduziu a Hong Kong e, daí, a boa parte da
Ásia. Essa rota desimpedida foi alargada,
pela omissão da administração chinesa.
Seu comportamento desde que se iniciou o surto se assemelha a um compêndio de medidas totalitárias. Primeiro, esconder a ocorrência de uma epidemia,
tanto para o público interno quanto para
o externo. Medidas precoces e cruciais
de contenção deixaram de ser tomadas.
Depois, escamotear dados e impedir o
acesso de especialistas da OMS (Organização Mundial da Saúde) aos focos de
surto. Em seguida, liberar os dados e o
acesso por etapas, na tentativa de diluir o
impacto das revelações sobre números
de casos e de mortes, além da situação
dos hospitais militares. Em todas essas
ações, os imperativos de saúde pública
pareciam sempre vir em segundo lugar.
O resultado está aí para todos verem:
milhares de pessoas em quarentena forçada em Pequim e Hong Kong, pânico
em dezenas de cidades asiáticas, desgraça para o turismo em Toronto, queda de
0,3 a 0,9 ponto percentual no crescimento da economia chinesa em 2003 e 2004.
É externalidade para ninguém pôr defeito, e não é culpa (só) do coronavírus,
mas sim de parasitas de outra e pior espécie, para os quais os tais mercados fizeram vistas grossas anos a fio.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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