|
Próximo Texto | Índice
+ ciência
O fim da natureza humana e não- humana
Associated Press/17.jul.2000
|
Criança chinesa brinca nas mediações
da cidade de Fengdu, às margens do rio Yang-Tsé, área que deverá ser inundada pela usina hidrelétrica de Três Gargantas, projetada para ser a maior do mundo e uma das mais criticadas por seus efeitos socioambientais |
Modificar genes de plantas afeta só o que cultivamos e comemos; alterar os próprios genes afeta quem somos
|
Francis Fukuyama
especial para a Folha
As pessoas que não vêm prestando muita atenção à discussão em torno da biotecnologia humana talvez pensem que a principal questão em pauta nesse debate diga respeito ao aborto, já que os adversários mais veementes da clonagem, até agora, têm sido os chamados defensores do direito à vida (ou seja, adversários do aborto), que se opõem à destruição de embriões. Mas existem razões importantes para que a clonagem e as tecnologias genéticas que a seguirão sejam motivo de preocupação para todas as pessoas, religiosas ou não, e sobretudo para aquelas que se preocupam em proteger o ambiente natural. Pois a tentativa de dominar a natureza humana por meio da biotecnologia será ainda mais perigosa e repleta de consequências do que os esforços feitos pelas sociedades industriais para controlar a natureza não-humana por
meio de gerações anteriores de tecnologia.
Se há uma coisa que o movimento ambientalista nos ensinou, nas duas últimas gerações, é que a natureza é um todo complexo. As diferentes partes de um ecossistema são mutuamente interdependentes, de uma maneira que frequentemente não conseguimos compreender, e os esforços humanos para manipular certas partes dele vão gerar uma multidão de consequências não-pretendidas que vai retornar para nos assombrar.
Assistir hoje a um dos filmes feitos nos anos 1930 sobre a construção da barragem Hoover ou da Tennessee Valley Authority (órgão federal americano criado na década de 1930 para desenvolver o potencial hidrelétrico do rio Tennessee e que acabou construindo 26 barragens no rio e em seus afluentes) é uma experiência estranha. Os filmes têm um tom ao mesmo tempo ingênuo e ligeiramente stalinista, celebrando a conquista da natureza pelo homem e gabando-se da substituição dos espaços naturais por outros feitos de aço, concreto e eletricidade. Essa vitória sobre a natureza teve vida curta: na última geração, nenhum país desenvolvido empreendeu um grande projeto novo de hidrelétrica, exatamente porque hoje já compreendemos as consequências ecológicas e sociais devastadoras geradas por tais empreendimentos. Na verdade, o movimento ambientalista vem se esforçando para convencer a China a desistir da construção da tremendamente destrutiva barragem das Três Gargantas.
Se o problema das consequências não-pretendidas é
sério no caso dos ecossistemas não-humanos, será muito pior no campo da genética humana. De fato, o genoma humano já foi comparado a um ecossistema, em razão da maneira complexa pela qual os genes interagem
uns com os outros. Estima-se hoje que há apenas cerca
de 30 mil genes no genoma humano, muito menos do
que os 100 mil que, até recentemente, se acreditava que
houvesse. Não é um número tão maior assim do que os
14 mil genes existentes na mosca-das-frutas ou dos 19
mil que possui um verme nematóide (C. elegans) e indica que muitas das capacidades humanas são controladas pela interação complexa de vários genes.
Os primeiros alvos da terapia genética serão enfermidades relativamente simples causadas por um único gene, tais como a doença de Huntington ou o mal de Tay-Sachs. Muitos geneticistas acreditam que a causalidade
genética de comportamentos e características de ordem
superior, tais como a personalidade, a inteligência ou
mesmo a altura, é tão complexa que jamais seremos capazes de manipulá-la. Mas é precisamente aqui que
mora o perigo: nós nos sentiremos constantemente tentados a pensar que conhecemos essa causalidade melhor do que a conhecemos na realidade e enfrentaremos
surpresas ainda mais desagradáveis do que enfrentamos quando tentamos conquistar o ambiente natural
não-humano. Nesse caso, a vítima de um experimento
fracassado não será um ecossistema, mas uma criança
humana cujos pais, movidos pelo desejo de dotá-la de
mais inteligência, vão onerá-la com uma propensão
maior a sofrer de câncer, de fraqueza prolongada na velhice ou de algum outro efeito colateral totalmente inesperado, que se manifestará muito depois.
Ouvir as pessoas da indústria da biotecnologia falarem sobre as oportunidades que se abrem com a conclusão do sequenciamento do genoma humano é, de
maneira estranha, um pouco como assistir àqueles velhos filmes de propaganda da barragem hidrelétrica de
Hoover: há uma confiança tingida de soberba em que a
biotecnologia e a inventividade científica vão poder
corrigir os defeitos da natureza humana, eliminar as
doenças e, quem sabe, até mesmo algum dia proporcionar ao ser humano o acesso à imortalidade. Vamos terminar como uma espécie superior, porque compreendemos quão imperfeita e limitada é nossa natureza.
Acredito que o ser humano é, em grau ainda maior do
que os ecossistemas, um todo natural complexo e coerente, cuja origem evolutiva nós nem sequer começamos a compreender. Mais do que isso: possuímos direitos humanos exatamente em função dessa natureza especificamente humana. Como disse Thomas Jefferson
no final da vida, os americanos gozam de direitos políticos iguais porque a natureza não fez com que determinados seres humanos nascessem com uma sela nas costas, prontos para serem cavalgados por seus superiores.
Uma biotecnologia que procure manipular a natureza
humana não apenas correrá o risco de desencadear
consequências imprevistas como pode solapar a própria base dos direitos democráticos iguais.
Como, então, defender a natureza humana? As ferramentas para isso são, essencialmente, as mesmas usadas para proteger a natureza não-humana: procurar,
por meio da discussão e do diálogo, fixar normas a serem seguidas e usar o poder do Estado para regulamentar a maneira como a tecnologia será desenvolvida e utilizada pelo setor privado e pela comunidade científica.
A biomedicina já é, claro, fortemente regulamentada,
mas existem brechas enormes nos órgãos federais americanos cuja autoridade se estende à biotecnologia. A
Food and Drug Administration dos EUA só pode regulamentar alimentos, medicamentos e outros produtos
médicos com base em sua eficácia e sua segurança de
uso. Ela é proibida de tomar decisões com base em considerações éticas e possui jurisdição fraca ou inexistente
sobre procedimentos médicos como a clonagem, o
diagnóstico genético prévio à implantação (pelo qual os
embriões são testados para a averiguação de suas características genéticas, antes de serem implantados no útero) e a engenharia de células da linhagem germinativa
(na qual os genes do embrião são manipulados de maneira a serem herdados pelas gerações futuras).
Os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH) criaram diversas regras cobrindo a realização de experiências com seres humanos e outros aspectos da pesquisa
científica, mas sua autoridade abrange apenas as pesquisas realizadas com financiamento federal, deixando
livre a indústria da biotecnologia privada. Só as empresas americanas de biotecnologia gastam US$ 10 bilhões
anuais em pesquisas e empregam 150 mil pessoas.
Outros países estão se esforçando para criar legislação
que regulamente a biotecnologia humana. Um dos dispositivos legislativos mais antigos é o do Reino Unido,
que criou a Agência de Embriologia e Fertilização Humana há mais de dez anos, para regulamentar as experiências com embriões. Vinte e quatro países já proibiram a clonagem reprodutiva, incluindo Alemanha,
França, Índia, Japão, Argentina, Brasil, África do Sul e
Reino Unido. Em 1998, o Conselho da Europa aprovou
um Protocolo Adicional a sua Convenção sobre os Direitos e a Dignidade Humanos com Relação à Biomedicina, proibindo a clonagem reprodutiva humana. O documento já foi assinado por 24 dos 43 países membros
do Conselho. Alemanha e França propuseram que a
ONU redija uma convenção global para proibir a clonagem reprodutiva.
Qualquer pessoa que acredite na importância de defender a natureza não-humana contra a manipulação
tecnológica deve acreditar igualmente na importância
da defesa da natureza humana. O movimento ambientalista europeu se opõe com mais firmeza à biotecnologia do que seu equivalente nos Estados Unidos e conseguiu barrar totalmente a proliferação de alimentos
transgênicos no continente. Mas, em última análise, os
transgênicos são apenas o primeiro tiro disparado numa revolução muito mais prolongada, e suas consequências terão alcance muito menor do que as das biotecnologias humanas que estão surgindo. Algumas pessoas acreditam que, em vista da depredação causada
pelo homem na natureza não-humana, esta última merece a proteção mais vigilante. Mas, no final das contas,
ambas fazem parte do mesmo todo. Modificar genes de
plantas afeta só o que cultivamos e comemos; modificar
nossos próprios genes afeta quem somos.
A natureza -tanto o ambiente natural que nos cerca
quanto a nossa própria- merece uma abordagem baseada no respeito e no cuidado, não na dominação e no
controle.
Francis Fukuyama é professor de economia política internacional na
Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns
Hopkins. Ele é autor de ""O Fim da História" (Editora Gradiva) e do recém-lançado ""Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution" (Farrar, Straus, and Giroux).
Artigo originalmente publicado pelo Worldwatch Institute na revista
"World Watch", volume 15, número 4. A edição em português da revista "World Watch" está disponível em www.worldwatch.org.br
Tradução de Clara Allain
Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: A dramática história da Terra Índice
|