|
Texto Anterior | Índice
Micro/Macro
A dramática história da Terra
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Tentar recriar o passado não é nada fácil. Especialmente quando a maioria das pistas deixadas foi metodicamente apagada pelo tempo, o grande inimigo da
memória. O arqueólogo tenta reconstruir a história de
uma civilização usando as poucas pistas que encontra
-pedaços de vasos e urnas, pontas de flechas e lanças,
partes de um túmulo ou de uma pedra funerária. O paleontólogo tenta reproduzir os detalhes da evolução da
vida a partir de fósseis que, na maioria das vezes, mal reconstroem uma pata ou uma asa. Já o geólogo tenta recontar a história da Terra por meio do estudo metódico
das rochas, por exemplo das variações em sua composição química e em sua estrutura cristalográfica, ou da
maneira como elas se amontoam em camadas cuja ordem funciona como um relógio: as mais profundas são
as mais antigas.
As três profissões lutam contra o mesmo inimigo, a
decomposição e a erosão gradual dos materiais, que é
extremamente acentuada aqui na Terra, devido ao
enorme dinamismo de sua atmosfera. O desafio é extrair o maior número de detalhes usando o que ficou registrado nos diversos materiais. No caso do geólogo, na
memória das rochas.
A geologia teve uma infância relativamente tranquila.
No início do século 19, o britânico Charles Lyell publicou o livro "Princípios de Geologia", no qual propôs a
doutrina conhecida como gradualismo (ou uniformitarianismo), segundo a qual as mudanças na crosta terrestre são extremamente lentas, imperceptíveis dentro
de parâmetros humanos de tempo.
No final da década de 1960, essa visão ganhou grande
ímpeto, com a verificação da chamada tectônica de placas, teoria que concebe a crosta terrestre formada por
várias camadas rochosas, que flutuam lentamente em
várias direções, com velocidades de alguns centímetros
por ano, comparáveis à velocidade de crescimento das
unhas.
O leitor pode facilmente verificar, comparando mapas da África e da América do Sul, como os continentes
se encaixam um no outro, como peças de um quebra-cabeças. Segundo o gradualismo, os incidentes mais
violentos na história terrestre se limitam a erupções vulcânicas, terremotos e mudanças climáticas, como grandes dilúvios ou eras glaciais. Hoje, sabe-se que essa visão conta apenas metade da história: a outra metade
não tem nada de gradual.
Basta olharmos para a superfície da Lua com um par
de binóculos para detectar, imediatamente, inúmeras
crateras, cicatrizes das violentas colisões que marcaram
a história do satélite. São mais de 30 mil crateras conhecidas, com tamanhos os mais variados.
É fácil reproduzir (muito modestamente) o que ocorre em uma colisão entre um asteróide ou um cometa e
um corpo celeste sólido, como a Lua ou a Terra. O leitor
pode fazer essa experiência na próxima vez em que visitar um lago ou uma praia: jogue pedras de tamanhos diferentes na água, com velocidades diferentes.
Primeiro se observa o deslocamento da água, marcado pela cavidade que circunda o ponto de impacto. Depois, vê-se uma coluna de água erguer-se no meio da cavidade, cuja altura cresce com a energia do impacto
-quanto maior a energia, maior a sua altura. Finalmente, ondas circulares se propagam concentricamente a partir do ponto de impacto, dissipando a energia da
colisão.
O que ocorreu na Lua ocorreu também na Terra (e em
todos os planetas e luas do Sistema Solar), se bem que se
conhecem menos de 200 crateras na superfície terrestre.
A erosão aqui é mesmo extremamente eficiente, mas
não é perfeita. Várias técnicas vêm sendo desenvolvidas
para descobrir impactos do passado.
A chamada cratera do Meteoro, aberta há 50 mil anos
nos EUA por um asteróide rico em ferro e níquel com
45 metros de diâmetro, é o exemplo mais bem-preservado de um impacto. Até 1960, acreditava-se que a cratera houvesse sido deixada por uma erupção vulcânica.
Mas a análise das rochas locais mostrou um processo de
vitrificação típico das altíssimas temperaturas que
ocorrem durante um impacto (mais de 1.500C).
Outro método é o das imagens de satélites: o lago Mistatin, no Canadá, revelou-se na verdade uma cratera de
38 milhões de anos. A ilha central no lago é o que restou
da coluna criada pelo impacto. Até mesmo a desordem
no campo magnético das rochas pode acusar um local
de impacto.
Gradualismo e catastrofismo oferecem mais do que
uma visão complementar do passado terrestre: essas
doutrinas mostram que criação e destruição também
são complementares, e que nós não estaríamos aqui
sem uma combinação dos dois.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: + ciência: O fim da natureza humana e não- humana Índice
|