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Ciência em Dia
Por que a pesquisa precisa da retórica
Marcelo Leite
colunista da Folha
Provas Públicas: Ciência, Tecnologia e
Democracia. Só mesmo na França parece possível organizar um congresso científico com esse tema geral. E ainda juntar
1.200 pessoas para debater novas formas
-dramáticas e retóricas, decerto, mas
companheiras da verdade- de reconciliar
pesquisa científica e vida social, hoje em litígio avançado, como deixa patente a tenaz
controvérsia globalizada sobre os alimentos geneticamente modificados, ou transgênicos.
Pois foi essa a proeza de Bruno Latour, o
polêmico autor de "Ciência em Ação"
(Editora Unesp). Era a estrela-mor da conferência conjunta da Sociedade para Estudos Sociais da Ciência (4S, na abreviação
em inglês), que preside, e da Easst (Associação Européia para o Estudo de Ciência e
Tecnologia). O encontro teve lugar na Escola de Minas, em Paris, e de 25 a 28 de
agosto encheu o bulevar Saint Michel de
bolsas cor de laranja. Dentro delas, cada
um dos conferencistas arrastava um catatau de 966 páginas só de resumos dos trabalhos apresentados em 189 sessões e mesas-redondas.
Foi uma festa. Afinal, era Paris. Até banquete sobre as águas do rio Sena o congresso ofereceu, mas se engana quem concluir
que houve só frivolidades. Ali se discutiu
de tudo, inclusive a socialidade de máquinas, mas principalmente o desaparecimento da fronteira entre especialistas em
que se podia confiar, encarregados dos fatos, e o público em geral, encarregado de
coaduná-los com valores e de definir cursos de ação.
Essa divisão de atribuições sempre comportou transações de lado a lado, mas hoje
a confusão é completa. Como resultado,
observa-se uma erosão contínua e preocupante do prestígio social da ciência. Bruno
Latour tem lá suas idéias sobre como resolver o qüiproquó, mas elas estão longe de
ser consensuais, práticas e assimiláveis.
Cientistas e cidadãos precisariam reaprender a encenar a verdade provisória da ciência no teatro da opinião pública, afirma o
intelectual francês, pois não lhe basta mais
concordar com o objeto de estudo. É preciso encontrar novas formas de fazer com
que entre em concordância com a massa,
também.
Como sempre quando há muita perplexidade, os clássicos podem vir em socorro.
Na abertura oficial da conferência, realizada em pleno Senado da República -no vizinho Palácio de Luxemburgo-, quem
roubou a cena de Latour foi Barbara Cassin, helenista convidada para discorrer sobre as relações entre ciência e retórica. E
que discurso ela fez.
Cassin partiu de Aristóteles: o justo e o
verdadeiro são mais fortes que os seus contrários, por natureza, mas a retórica não
pode ser desprezada. Afinal, é uma vergonha permitir que o verdadeiro se torne
mais fraco. Aí comparece a retórica: ela é
necessária, segundo Cassin, para ajudar
contra a... simples retórica. Mais arte, e não
menos, para auxiliar a natureza a derrotar
o artifício.
Provas públicas e discursos têm de empregar os meios adequados ao que é comum (diverso do universal), ou seja, aquilo que todos podem entender. O verdadeiro é diferente do persuasivo, e a demonstração pública tem de ser persuasiva, além
de verdadeira (apodítica). Contrariamente
ao verdadeiro, o que parece persuasivo já é
persuasivo, disse a helenista, e por isso pode desencaminhar o debate (tal era a especialidade dos sofistas). Mas há momentos
em que o comum se antepõe benignamente ao verdadeiro, e é nesse momento criativo que podem surgir novos valores.
Depende só de nós fazer com que nessa
hora se produza muito mais luz, e não apenas calor.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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