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Micro/Macro
Anjos e demônios
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Antes do best-seller "O Código Da Vinci", o escritor americano Dan Brown
publicou "Anjos e Demônios" que, com o
sucesso do "Código", virou também um
best-seller. Apesar de o "Código" estar na
minha estante, confesso que ainda não o li.
Mesmo assim, acabei entrando no mundo
de grandes intrigas e sociedades secretas
de Brown pela porta dos fundos.
O jornalista e editor Dan Burstein publicou um livro sobre o "Código", com ensaios de especialistas. Bem, o livro sobre o
livro também virou um sucesso. Tanto que
Burstein resolveu repetir a dose e está preparando um livro semelhante sobre "Anjos e Demônios". É aqui que eu entro; a pedido de Burstein, li o livro e estou respondendo às suas perguntas. Por que meu interesse em participar? Porque "Anjos e Demônios" trata da "guerra" entre ciência e
religião, tema de extrema importância.
"Anjos e Demônios" é escrito em estilo
irresistível e acessível. Você prefere não
dormir só para ler mais um pouquinho.
Ele trata de questões que passam pela cabeça de todos: a existência de Deus, a possibilidade de se ter fé em um Universo que
parece ter profunda indiferença por nós, a
reconciliação entre o científico e o espiritual. Só que o livro leva o conflito entre razão e fé à uma conflagração apocalíptica.
Quando se fala em "guerra" entre ciência
e religião, o termo é usado de forma metafórica. O Vaticano ainda não bombardeou
o Centro Europeu de Física de Altas Energias, o Cern. E o Cern também não tem
planos de bombardear o Vaticano. Essa é a
premissa do livro. A idéia é genial: um físico religioso acredita ter reproduzido o Big
Bang em laboratório, tornando a gênese
um evento científico. Sua intenção não era
contestar a existência de Deus. Pelo contrário, o cientista queria provar que é possível se criar algo a partir do nada. Mas o
feitiço virou contra o feiticeiro.
Claro, a ciência de Dan Brown está completamente furada: seu cientista colidiu
dois feixes de partículas a energias altíssimas. Da colisão surgiram partículas de
matéria e antimatéria -o oposto das partículas de matéria. Por exemplo, um elétron tem como antipartícula um pósitron,
com mesma massa e carga elétrica oposta.
No livro, a criação de antimatéria é tratada
como um evento fantástico, surgindo milagrosamente do ponto da colisão entre os
dois feixes, feito a criação de matéria no Big
Bang, vinda do nada. Na realidade, esse tipo de fenômeno é observado diariamente
em aceleradores de partículas espalhados
pelo mundo. O que ocorre é expressão da
fórmula E=mc2: a energia das partículas
em colisão é transformada em matéria, pares de partículas e antipartículas que "surgem" do ponto de colisão. O Big Bang é
uma outra história.
Sendo um livro de ficção, a ciência estar
incorreta é menos importante do que a discussão da crise espiritual que assola o
mundo. Em um certo ponto, a secretária
do diretor do Cern, uma católica, exclama:
"Será que os cientistas acham que quarks e
mésons [partículas de matéria] inspiram o
homem comum? Ou que equações podem
substituir a necessidade de termos fé no divino?" Essa é a expectativa de muita gente,
que o avanço da ciência implique na diminuição da fé. A ciência é vista como uma
ameaça à religião: quanto mais aprendemos sobre a natureza, mais difícil é aceitar
a existência de forças sobrenaturais.
Realmente, sob o ponto de vista científico, a idéia de que existem forças ou entidades sobrenaturais não faz sentido. Afinal,
se algo ocorre e é observado, esse algo deixa de ser sobrenatural. Se é ou não explicado pela ciência é outro problema. Via de
regra, a explicação vem, mais cedo ou mais
tarde. Ou seja, a expressão "fenômeno sobrenatural" não faz sentido. Mas existe um
dogmatismo muito grande, dos dois lados.
O avanço da ciência deixou um vácuo espiritual que ela não pode preencher. Perdas
emocionais, questões éticas ou morais não
serão decididas por teoremas ou experimentos. Por outro lado, negar o avanço
científico é uma postura absurda. Existem
anjos e demônios dos dois lados.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro
"O Fim da Terra e do Céu"
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