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FUGA DE CÉREBROS DESENCADEADA PELO NAZISMO MUDOU EIXO DA PESQUISA
OCIDENTAL DA ALEMANHA PARA OS EUA
O PRESENTE DE ADOLF HITLER
Reprodução
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Albert Einstein, cuja física era desprezada pelos nazistas |
Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local
Uma comunidade científica -o conjunto de
cientistas de um país- pode ser comparada a
uma planta. Começa com uma semente, cresce aos poucos e precisa sempre de água, luz e
nutrientes. Acabar com ela é muito mais fácil do que
criá-la -pode ser feito rapidamente, a ferro e fogo, ou
aos poucos, negando aquilo de que precisa para existir.
Essa analogia descreve perfeitamente o que aconteceu
com a maior comunidade científica da primeira metade
do século 20, a alemã. A planta foi arrancada pelos nazistas, mas deu frutos em outros países.
De 1901 a 1932, os primeiros 32 anos do Prêmio Nobel,
a Alemanha liderava nas categorias científicas. De 100
prêmios, 33 foram para alemães, 18 para britânicos e
apenas 6 para americanos. Dos laureados alemães, oito,
ou cerca de 25%, eram de origem judaica, apesar de os
judeus representarem então 1% da população alemã.
Já de 1951 a 2002, os americanos passaram à liderança
do mais cobiçado prêmio internacional de ciência -e
até mesmo os britânicos ultrapassaram os germânicos.
Dos 327 prêmios concedidos nesse período, 180 (55%)
foram para os Estados Unidos, 44 (13%) para o Reino
Unido e 31 (9%) para a Alemanha.
O principal motivo dessa inversão que fez o inglês se
tornar a língua universal da ciência foi a fuga de cérebros resultante da tomada do poder em 1933 pelo Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães,
mais conhecido pela sua abreviatura -"nazista".
Seu líder, o austríaco Adolf Hitler (1889-1945), pretendia construir um império de mil anos. Uma das bases
ideológicas do nazismo era o racismo, especialmente
contra judeus e "raças inferiores", como eslavos.
Apenas dez semanas depois da chegada ao poder, Hitler demitiu a maioria dos judeus que trabalhavam para
o Estado. Todas as universidades eram estatais. De um
momento para outro, todos os acadêmicos judeus ficaram sem emprego.
A história dessa fuga de pesquisadores e de sua incorporação à ciência anglo-americana está admiravelmente contada no livro "O Presente de Hitler - Cientistas
que Escaparam da Alemanha Nazista", de Jean Medawar e David Pyke, agora publicado no Brasil.
Pyke, morto em 2001, era pesquisador na área médica.
Jean é a viúva de sir Peter Medawar (1915-1987), biólogo
britânico nascido no Rio de Janeiro e ganhador do Nobel de Medicina e Fisiologia. Eles conheceram pessoalmente vários dos cientistas citados, o que dá um charme adicional ao livro, repleto de casos interessantes.
Também viram o nazismo de perto -Jean se lembra de
alguns dias passados na Floresta Negra alemã e dos onipresentes estandartes com a suástica.
Tecnologia de guerra
O tamanho do êxodo científico pode ser medido nas estatísticas do Conselho de Assistência Acadêmica (depois renomeado Sociedade para a Proteção da Ciência e da Cultura). Essa entidade foi
criada por acadêmicos britânicos para auxiliar seus colegas exilados. No final da Segunda Guerra (1939-1945),
havia 2.541 acadêmicos refugiados registrados na entidade, a maioria alemães e austríacos. Entre os europeus
forçados a abandonar seus laboratórios, contam-se 27
ganhadores do Nobel (dos quais sete o obtiveram antes
da chegada dos nazistas ao poder).
Esse "presente" de Hitler contribuiu para que a Alemanha perdesse a guerra. Basta ter em mente o papel
desempenhado pela ciência e pela tecnologia nos conflitos do século 20 em diante. Não se trata apenas de aperfeiçoar armamentos e equipamentos, como o sonar, o
radar ou os mísseis balísticos. Ciência e tecnologia têm
uma influência muito mais abrangente.
O livro dá um bom exemplo, relativo à Primeira Guerra (1914-1918). Se não fosse pelo químico Fritz Haber
(1868-1934), a Alemanha quase certamente teria perdido a guerra logo no primeiro ano. Haber descobriu um
método econômico de sintetizar amônia, base dos nitratos, essenciais para duas coisas: explosivos e fertilizantes. Com o bloqueio naval aliado, os alemães tiveram seu acesso ao nitrato chileno cortado. Sem nitratos,
não haveria nem munição nem comida.
O mais famoso cientista moderno, Albert Einstein
(1879-1955), era alemão e se naturalizou americano
(uma citação no livro, de J.B.S. Haldane, o define como
"o maior judeu desde Jesus"). Einstein sofreu na pele o
anti-semitismo da elite intelectual alemã, mas não chegou a ser uma vítima do nazismo, pois tinha saído do
país bem antes. Não só não voltou mais como, depois
do massacre dos judeus nos campos de extermínio,
passou a detestar os alemães em geral.
Carta-bomba
Uma famosa carta assinada por ele e
outro cientista refugiado teve papel importante no destino da guerra. A carta foi para o presidente americano
Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) em agosto de
1939. Pedia que se iniciasse a pesquisa que viria a resultar na bomba atômica. O inspirador da carta, o físico
nuclear húngaro Leo Szilard (1898-1964), tinha feito sua
carreira na Alemanha, mas se mudou para o Reino Unido depois que os nazistas chegaram ao poder e dali foi
para os EUA.
Szilard foi o criador da primeira reação em cadeia nuclear, junto com outro "presente" da Europa para os
EUA, o italiano Enrico Fermi (1901-1954), casado com
uma judia. A diferença é que Fermi foi um "presente"
entregue pelo principal aliado de Hitler, o líder fascista
italiano Benito Mussolini (1883-1945).
Outro americano de origem húngara se tornou o
"pai" da bomba H, Edward Teller (1908-2003). Teller
também tinha feito carreira na Alemanha. A bomba de
hidrogênio emprega a fusão nuclear em lugar da fissão
(fundindo núcleos de átomos de elementos leves, como
o hidrogênio, em vez de quebrar núcleos de átomos de
elementos pesados, como o urânio). Permite a fabricação de bombas muito mais poderosas do que as que foram lançadas contra o Japão em 1945.
Nem só judeus saíram da Europa nazi-fascista. O físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) saiu da Alemanha, voltou à Áustria e saiu de novo, quando os alemães a incorporaram ao seu "Reich" (império).
Se os acadêmicos britânicos mostraram uma nobre
atitude ao acolher seus colegas perseguidos, o mesmo
não se pode dizer dos governos ocidentais. Burocracia e
mesmo anti-semitismo emperravam as imigrações. Começada a guerra, os cidadãos dos países inimigos eram
vistos com suspeita e muitas vezes confinados -mesmo que fossem judeus perseguidos pelo nazismo.
Raros cargos recusados
As várias biografias mostram graus distintos de integridade pessoal. Houve
muitos alemães que aproveitaram as expulsões dos judeus para subir na carreira. Muito mais raros foram os
que se recusaram a se aproveitar disso. Um deles, o farmacologista Otto Krayer (1899-1982), perdeu seu emprego por ter se recusado a aceitar um cargo tornado livre pela expulsão de um colega judeu. Para sorte da
Universidade Harvard, para onde foi em 1937.
O dilema dos que ficaram é o mesmo de todo acadêmico que tem de conviver com um governo ditatorial.
Um dos requisitos da boa ciência é a liberdade de expressão. Os físicos que permaneceram na Alemanha tinham de se conformar em pesquisar uma tal "física alemã", em contraposição ao que seria uma "física judaica". A teoria da relatividade de Einstein era um exemplo
dessa física judaica desprezada pelos nazistas.
O mais importante cientista que ficou na Alemanha
foi outro ganhador do Nobel, Werner Heisenberg
(1901-1976). Trata-se também do caso mais complexo e
ambíguo de todos. Ele trabalhava com energia atômica.
Teria Heisenberg obstado ou avançado o projeto de
uma bomba atômica nazista?
Uma famosa visita que fez ao colega dinamarquês
Niels Bohr (1885-1962) -ainda mais um vencedor do
Nobel-, em Copenhague, rendeu até uma peça teatral
de Michael Frayn, mas continua misteriosa. Parte da
conversa foi em torno das aplicações militares da energia nuclear. Segundo Bohr, Heisenberg estaria propondo uma política aos cientistas dos dois lados para não
fazerem a bomba. Os alemães, se soube depois, não chegaram nem perto do esforço nuclear americano.
Não são só físicos os citados no livro, por mais que o
episódio da bomba seja marcante. Os refugiados também fizeram trabalhos importantíssimos em biologia.
É o caso de Hans Adolf Krebs (1900-1981), bioquímico
que descobriu o fundamental processo biológico que
leva seu nome. O ciclo de Krebs explica como a energia
química da comida se transformar em energia física no
corpo. Ganhou o Nobel de Medicina de 1953.
Outro notável assina o prefácio do livro, o vienense
Max Ferdinand Perutz (1914-2002), que a partir de 1936
fez sua carreira na Universidade de Cambridge (Reino
Unido). Seus estudos sobre a molécula essencial do sangue, a hemoglobina, lhe deram o Nobel de Química de
1962.
"O Presente de Hitler" é repleto de detalhes, fatos, datas. Alguns errinhos passaram na edição original em
2000, como notou o pesquisador Walter Gratzer, que
fez então uma resenha para a revista "Nature". Os erros
apontados por Gratzer -por exemplo, chamar o físico
Arnold Sommerfeld (1868-1951) de "Arthur"- estão
corrigidos na edição brasileira.
O Presente de Hitler - Cientistas que Escaparam da Alemanha Nazista
308 págs. R$ 42,00
Jean Medawar e David Pyke. Editora Record (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000)
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