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Micro/Macro
Sobre gotas e esferas
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Volta e meia é bom deixarmos de lado assuntos mais exóticos, como
buracos negros, Big Bang, mecânica
quântica, neutrinos ou supercordas, e
pensarmos um pouco sobre as coisas
que vemos todos os dias e que passam
quase, ou totalmente, despercebidas. É
mesmo uma pena que, em nossas vidas
apressadas, mal tenhamos tempo de vislumbrar a beleza dos fenômenos simples, de apreciar a elegância das soluções
que a natureza encontra para equilibrar
função e forma. Por isso, hoje escrevo sobre uma forma que estamos cansados de
ver, a gota d'água.
Para tornar o assunto um pouco mais
romântico, imagine que você foi acampar com o seu amado (ou amada) na serra, em uma bela noite de junho, quando
a temperatura já está mais fria. Como sabem aqueles que acampam, com o sol
nascendo fica difícil dormir até tarde.
Você sai da tenda para atender às suas
necessidades biológicas e percebe que as
plantas à sua volta estão todas decoradas
por belíssimas gotas de orvalho, hemisférios líquidos resplandecentes, elegantemente simétricos.
Encantado, você começa a pensar nas
várias gotas d'água que passam por sua
vida, sem que você dê a menor bola: no
suor sobre a sua pele, na condensação no
chuveiro, no vidro embaçado do carro,
nas gotas de chuva, nas lágrimas de sua
amada (ou amado) durante um filme
triste etc. Então você percebe, de um só
golpe, que todas essas gotas têm uma
coisa em comum: elas são esféricas ou,
quando sobre uma superfície, hemisféricas. A questão passa a ser uma obsessão.
Por que a esfera? O que determina essa
forma e não outra?
Imagine uma gota d'água, suspensa no
ar. A água é composta por moléculas
combinando átomos de oxigênio e hidrogênio. A força que mantém as moléculas unidas é a atração elétrica entre os
seus átomos integrantes. Uma molécula
é eletricamente neutra, isto é, sua carga
elétrica total é zero. Mas não exatamente.
O ponto é que a distribuição de carga
na molécula nunca é perfeita: existe sempre um excesso (ou ausência) de carga,
dando à molécula uma pequena força
atrativa conhecida como força de Van
der Waals. Isso significa que uma molécula dentro de uma gota é atraída pelas
suas vizinhas em todas as direções, o que
resulta em uma força total nula. Mas esse
cancelamento das forças não ocorre para
as moléculas na superfície da gota: afinal,
não existem moléculas acima delas para
exercer qualquer atração -só de ar, mas
o efeito é mínimo. Ou seja, existe um desequilíbrio que faz com que as moléculas
na superfície da gota sejam atraídas para
seu interior.
Essa atração força as moléculas na superfície a se aproximarem mais, tornando-a mais densa. Esse efeito é conhecido
como tensão superficial do líquido e é o
responsável pela resistência que a superfície de um líquido oferece contra a sua
expansão ou ruptura. Isso explica, por
exemplo, por que uma agulha de metal,
que é aproximadamente oito vezes mais
densa do que a água, pode boiar. Diferentes líquidos têm diferentes tensões
superficiais. A do mercúrio é quase seis
vezes maior do que a da água, a 20C.
Quando a temperatura aumenta e as
moléculas estão mais agitadas, a tensão
superficial diminui.
E o que isso tem a ver com a esfericidade das gotas? Como a tensão superficial
causa uma contração das moléculas na
superfície, ela faz com que sua área seja a
menor possível. Para um volume fixo (a
quantidade de líquido na gota), a forma
geométrica com superfície de menor
área que existe é a esfera. Portanto, é a
tensão superficial que faz com que as gotas tenham essa forma. Se você cutucar a
gota bem de leve, você verá que ela vai
oscilar um pouco e depois voltará a ter a
forma esférica.
A esfera reaparece em vários outros lugares: balões, planetas, estrelas. Nesses
casos, as explicações para a forma são
outras e ficam para depois. Mas uma coisa é sempre verdade: a esfera é muito comum porque ela constitui a solução mais
econômica entre as tensões que existem
nos objetos. A natureza, sábia que é, forja
esse compromisso na forma mais simétrica que existe.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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