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+ ciência
Ao pilotar um dirigível de Santos Dumont em 1903, a cubana Aída d'Acosta
tornou-se a primeira mulher no comando de um veículo aéreo com real capacidade de manobra
A PRIMEIRA AERONAUTA
Arquivo Henrique Lins de Barros
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Salvador Nogueira
da Reportagem Local
As cadetes-aviadoras da Academia da Força Aérea Brasileira têm razão dupla para comemorar
este ano. Além de terem sido admitidas, pela
primeira vez, mulheres nos cursos de pilotagem
da estrutura militar nacional, comemora-se em junho o
centenário do vôo da primeira piloto da história da aeronáutica. E mais: a oportunidade foi dada pelo mais
célebre aeronauta brasileiro, ninguém menos que Alberto Santos Dumont.
Seis meses antes que os irmãos Orville e Wilbur
Wright fizessem sua primeira decolagem no Flyer, o
veículo que inauguraria a era dos aviões decolando de
Kitty Hawk (EUA) em 17 de dezembro de 1903, a cubana Aída d'Acosta já voava livremente pelos céus no dirigível Nš 9, construído por Santos Dumont naquele mesmo ano. Foi a primeira vez que uma mulher pilotou, sozinha, um dirigível (outras já haviam voado em balões).
Muito se fala da contribuição de Santos Dumont como o construtor daquele que muitos consideram o primeiro avião (o 14-Bis, de 1906). Aliás, tanto se fala nisso
que a mitologia criada em torno do inventor brasileiro
acaba ofuscando suas reais e espetaculares contribuições para a aeronáutica, muito antes que qualquer um
tentasse fazer voar um veículo mais pesado que o ar.
Santos Dumont foi o primeiro a construir um veículo
mais leve que o ar (balão) verdadeiramente dirigível, capaz de manobrar e trafegar em qualquer direção, com
velocidade, sem ajuda da meteorologia.
Alguns falam nele como o inventor do dirigível, mas,
a exemplo da disputa que há sobre o avião, também há
os que rebatam. Isso porque o francês Henry Giffard já
havia decolado a bordo de um veículo com todas as características de dirigível em 1852 -tinha motor, leme,
balão de hidrogênio, formato alongado. Mas também
tinha uma tremenda dificuldade de voar sob condições
adversas. Já Santos Dumont, em 1901, faturaria o prêmio Deutsch por atravessar Paris, dar a volta na torre
Eiffel e voltar, em 30 minutos, com dia e hora marcados,
provando a eficiência de seu modelo Nš 6.
De novo, se a história se prendesse às picuinhas sobre
quem foi o primeiro nisso ou naquilo, perderia de vista
quem foi o mais importante. E, nesse caso, Santos Dumont foi a peça fundamental na promoção do vôo como uma forma segura e viável de transporte. A decolagem que celebrizou Aída d'Acosta em 1903 faz parte justamente desse contexto.
As circunstâncias em que se deu o vôo são obscuras.
Algumas publicações deixaram registros conflitantes e
o relato de Santos Dumont, em seu livro "Dans l'Air"
(traduzido como "Os Meus Balões"), é tampouco confiável. A revista "L'Aérophile" de agosto de 1903 aponta
a data como 29 de junho, a mesma que Dumont. Mas o
pesquisador Henrique Lins de Barros, do Museu de Astronomia e Ciências Afins do Rio de Janeiro, prefere
adotar como fonte a revista "La Vie au Grand Air", de
dezembro de 1903, que registra a data do vôo como sendo 27 de junho.
"Santos Dumont confessadamente tinha problemas
com sua memória, ele até brinca com isso em um de
seus textos", conta Lins de Barros, justificando a opção
pelo relato de "La Vie au Grand Air", publicação que,
além do relato, trouxe fotos do evento.
Aída d'Acosta é uma personagem singular. Surgiu do
nada em Paris, vinda da alta sociedade nova-iorquina
(era cubana naturalizada americana), e voltou ao anonimato (e aos EUA) logo após o vôo. Segundo o tradutor de "Dans l'Air", A. de Miranda Bastos, ela teria se casado em 1927 com Henri Breckinridge, assistente do secretário da Guerra dos EUA de 1912 a 1916 e advogado
particular do aviador Charles Lindbergh por vários
anos. Depois de sua separação, em 1947, não há muitos
dados sobre seu paradeiro.
Exceção
Segundo Santos Dumont, ela o teria procurado requisitando aulas para pilotar o dirigível. A surpresa foi o inventor apoiar e autorizar o vôo -pelo simples
fato de que Dumont não deixava pessoa alguma, homem ou mulher, manejar seus modelos. "Ou por ciumeira, ou por cuidado", diz Lins de Barros. "Ele sempre
teve a postura de afirmar: "O risco é meu" -e não deixava que os mecânicos se submetessem a testes."
O fato de o brasileiro ter cedido rapidamente às investidas de d'Acosta, que decolou após apenas três aulas de
pilotagem, produziu várias suspeitas ao longo dos anos
de que Dumont estivesse tendo um caso com ela, ou no
mínimo apaixonado. "Em seu relato, Dumont não pouca elogios à beleza da moça. E numa foto do escritório
dele em Paris aparece, sobre a mesa, um porta-retrato
com uma foto de mulher. Há os que juram que seja uma
imagem de Aída d'Acosta", diz Lins de Barros.
O pesquisador, entretanto, oferece uma explicação
historicamente mais relevante -e talvez até mais plausível-, dadas as circunstâncias. Para ele, o vôo de d'Acosta pode ter sido só mais um passo na clara estratégia
de Dumont para dar publicidade a seus inventos. "A
quantidade de vôos que ele iria realizar em 1903 é impressionante. Ele realiza vôos noturnos, para demonstrar a segurança, leva uma criança com ele num pequeno vôo e deixa uma mulher pilotar, sem auxílio, sua aeronave." E culmina com uma demonstração ruidosa
em 14 de julho de 1903. A data comemorativa da queda
da Bastilha foi apimentada com uma surpresa de Santos
Dumont: o brasileiro surge nos céus em seu dirigível,
passando em revista no momento em que começaria o
desfile comemorativo, e dispara uma salva de 21 tiros de
revólver saudando o presidente francês.
Na sequência, ele mandaria uma carta ao ministro da
Guerra francês, colocando suas três aeronaves à disposição do governo, no caso de algum conflito com outro
país que não fosse das Américas. (O episódio também
derruba outro mito persistente sobre Santos Dumont,
de que sua visão da aviação tenha sido o tempo todo pacífica e não-militarista -ele mudou seu discurso ao
longo dos anos, mas desde o início tinha uma boa noção
do potencial da aviação em conflitos armados.)
Como se pode ver, além do gênio inventor, Dumont
também parece ter tido faro para o que depois se chamaria de marketing. E o vôo de Aída pode ter caído como uma luva na tentativa de popularizar o uso de dirigíveis. Em seu "Dans l'Air", ele escreve: "O simples fato de
haver consentido, com a condição de que a pretendente
recebesse primeiro algumas lições para a manobra do
motor e dos maquinismos, diz eloquentemente, suponho, da minha confiança no Nš 9".
Se a viagem aérea de d'Acosta foi útil aos planos do inventor brasileiro, talvez ela mesma não tenha tido tanta
sorte. Segundo relatos posteriores, como os de Helen S.
Waterhouse, que escreveu uma descrição completa dos
eventos numa edição da revista "Sportsman Pilot", em
1933 (mencionada em um estudo do Departamento de
Transportes dos EUA de 1998, intitulado "Women in
Transportation: Changing America's History"), a cobertura que a imprensa deu ao evento enfureceu os pais
da aeronauta. Como membros da elite conservadora da
época, eles julgavam que o nome de uma dama deveria
aparecer na imprensa em duas ocasiões: quando se casava e quando morria. A cobertura dada pela imprensa,
por vezes negativa, do vôo da jovem cubano-americana
acabou enfurecendo os pais, que teriam pedido a Santos
Dumont que omitisse o nome dela em seus escritos.
Tendo ou não o episódio ocorrido, o fato é que o inventor brasileiro de fato não fez menção ao nome da
moça, embora levasse o episódio na mais alta conta.
"Quanto à outra circunstância, a da primeira mulher
que subiu numa aeronave, com ou sem companheiro,
merece ser conservada nos anais da navegação aérea,
pois a moça, sozinha, dirigiu o Nš 9. A heroína, uma jovem e lindíssima cubana, muito relacionada na sociedade de Nova York, tinha vindo por diversas vezes, com
amigos, visitar a minha estação. E manifestara-me seu
ardente desejo de voar", relatou Dumont.
Centenário
São contradições como essas que, apesar
da relativa proximidade histórica, criam uma névoa em
torno da vida e da obra do brasileiro e tornam tão difícil
delimitar o exato escopo de suas contribuições -e, ao
mesmo tempo, tornam o estudo de seus feitos ainda
mais fascinante. Lins de Barros, por exemplo, hoje um
dos maiores especialistas na vida do aviador, confessa
que iniciou as pesquisas sem morrer de amores por
Santos Dumont. Mas as histórias mirabolantes e personalidade fascinante e misteriosa parecem ser irresistíveis. "Quem começa a entrar nisso não sai mais", diz. E,
no ano em que o mundo comemora o centenário da
aviação, essa paixão fica ainda mais exacerbada. Na semana em que conversou com a Folha, Lins de Barros
também preparava um artigo para uma revista nacional
e concedia uma entrevista a uma equipe latino-americana de um canal de televisão a cabo, ambos buscando
uma nova luz sobre o pioneiro brasileiro.
Nos EUA, vários grupos estão no momento alimentando planos para construir uma réplica tão exata
quanto possível do Flyer dos irmãos Wright e reproduzir, em dezembro, o feito original da dupla, realizado
em 1903. Parece apropriado que o Brasil também se
prepare para em 2006 fazer decolar um 14-Bis, montado
a partir das plantas originais de Santos Dumont (segundo Lins de Barros, há esboços iniciais para que a idéia
seja levada a cabo). Afinal, é difícil que alguém considere injusto lembrar os feitos extraordinários do inventor
brasileiro. A cultura futebolística nacional -que há
muito preconiza que quem chega em segundo é um
perdedor- não deve ser estendida à aeronáutica.
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