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Ciência em Dia
A comédia dos transgênicos
Marcelo Leite
editor de Ciência
O governo Luiz Inácio Lula da Silva
deu enfim um desfecho, na base da
canetada, para a novela dos alimentos
transgênicos. Seguindo o padrão de continuísmo que tem caracterizado sua administração, e para surpresa só dos desavisados, decidiu autorizar a comercialização da soja geneticamente modificada
-e clandestinamente plantada- para
se tornar resistente a herbicida.
Traduzindo em palavras comuns: o governo federal baixou uma medida provisória legalizando a ilegalidade largamente praticada por agricultores do Rio
Grande do Sul. Quando optaram por
contrabandear da Argentina a soja apelidada de Maradona, ou simplesmente
comprar sementes que até as pedras das
coxilhas sabiam ser contrabandeadas, os
sojicultores gaúchos sabiam que o faziam sob a proibição de um juiz federal.
Pois foi esse desafio aberto à ordem jurídica que o presidente da República decidiu sancionar. Ele foi praticado sob o
silêncio das empresas de biotecnologia e
a vista grossa do órgão encarregado de
controlar os OGMs, ou organismos geneticamente modificados, a CTNBio
(Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). A política do fato consumado,
como se comprova mais uma vez no país
do faz-de-conta, dá resultados. Não se
tratasse de uma leguminosa, seria o caso
de declarar, em linguagem popular: está
aberta a festa do caqui.
Nem é preciso ser contra (ou a favor)
dos OGMs para espantar-se com a decisão. Do ponto de vista da biossegurança
propriamente dita, mesmo alguns adversários dos transgênicos, por princípio
ou ideologia, concederão que a soja
Roundup Ready da Monsanto não representa grande ameaça, seja para a saúde humana, seja para o ambiente.
Plantada há vários anos nos Estados
Unidos e na Argentina, em larga escala,
não há caso documentado de reação
alérgica ou outro dano à saúde provocado pela RR. A planta recebeu um gene de
bactéria para se tornar capaz de metabolizar (degradar) o herbicida glifosato,
que a própria Monsanto vende como
Roundup. Isso faz com que não morra
com as ervas daninhas, quando a plantação é tratada com esse defensivo. Para as
autoridades reguladoras desses países,
assim como para a CTNBio, tal modificação genética não afeta a composição
da soja como alimento.
Do ponto de vista ambiental, há razões
para acreditar que a soja RR possa ser
inócua, pelo menos no país. Primeiro,
porque não há nos ecossistemas brasileiros parente silvestre próximo da Glycine
max (nome científico da soja), para o
qual os genes modificados pudessem
passar, dada a notória promiscuidade
genética das plantas. Segundo, porque a
soja não espalha pólen que fertilize plantas aparentadas, como o milho.
Com base só nessas ponderações "técnicas", mas sem discussão pública, a
CTNBio autorizou em 1998 o plantio comercial da RR. Deu no que deu. Organizações não-governamentais questionaram na Justiça a dispensa de estudos de
impacto ambiental, que seria inconstitucional, e a questão se arrastava desde então pelos tribunais -até Lula pôr-lhe
um ponto final, pelo menos no que se refere à safra atual, agora liberada.
Não é a primeira vez que um governo
federal tenta desatar o nó dos transgênicos sob o fio cortante de medidas provisórias. FHC fez exatamente a mesma
coisa -sem sucesso, é bom lembrar.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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