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Micro/Macro
Raios e trovões!
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Vivemos em um mundo elétrico. Em
condições normais, durante um dia
calmo num local plano e descampado, o
aumento na eletricidade da atmosfera é
inicialmente de cem volts por metro. Ou
seja, do seu nariz até o chão existe uma
diferença aproximada de 200 volts, quase duas vezes maior do que a eletricidade
na tomada. Imagino o leitor perguntando: "Mas, nesse caso, por que não levamos grandes choques o tempo todo?". A
razão é que o corpo é um bom condutor
de eletricidade. Quando em contato com
o chão, temos a sua mesma voltagem,
que definimos como sendo zero. Já com
a atmosfera, a situação é bem diferente.
Com o aumento de altitude, a variação
na voltagem diminui. Isso porque a voltagem depende da densidade do ar, que
também diminui com a altitude. Mas os
números são impressionantes. A diferença de potencial entre o topo da atmosfera, a 50 quilômetros de altitude, e o
chão é de 400 mil volts.
De onde vem essa eletricidade toda? E
o que a mantém? Antes de mais nada, é
importante frisar que ninguém vai ser
eletrocutado pela atmosfera. A menos,
claro, que a pessoa seja atingida por um
raio. O ar, felizmente, não é um bom
condutor de eletricidade. Mas alguma
flui, passando cargas elétricas do céu para o chão.
Essa condutividade é causada por íons,
por exemplo, uma molécula de oxigênio
que ganhou ou perdeu um elétron, tornando-se eletricamente carregada. É
bom lembrar que correntes elétricas são
causadas pelo fluxo de cargas elétricas de
um ponto a outro. Essas cargas são atraídas por cargas opostas. No caso da Terra,
cargas positivas são atraídas para o chão.
A questão então é de onde vêm esses íons
e por que eles não acabam ao serem neutralizados na superfície.
Os íons caem dos céus. Em 1912, o físico austríaco Victor Hess usou um balão
para testar a ionização da atmosfera. Para sua surpresa, descobriu que ela aumenta com a altitude. Uma nova área de
pesquisa surgiu com a descoberta de
Hess, os raios cósmicos. No Brasil, por
exemplo, um dos expoentes dessa pesquisa no século 20 foi Cesar Lattes.
Raios cósmicos são originados provavelmente no centro ativo de galáxias distantes e outros objetos astrofísicos capazes de gerar verdadeiros jatos de partículas, acelerando-as pelo espaço interestelar. Ao chocarem-se com moléculas na
atmosfera da Terra, essas partículas podem arrancar alguns de seus elétrons.
Como a chuva cósmica é constante, a reserva de íons e, portanto, a fraca corrente
atmosférica são sempre renovadas.
Existem outros tipos de íon. Quando
uma onda arrebenta na areia, pequenas
gotículas d'água salgada são atiradas para o alto. Quando a água evapora, cristais
microscópicos de sal (NaCl) permanecem no ar, flutuando e coletando íons
que porventura passem perto deles. Mas
esses cristais são maiores e mais lentos
do que os íons criados por raios cósmicos. A condutividade do ar é bastante variável, pois ela depende da quantidade
local de íons mais rápidos e mais lentos.
Em grandes altitudes, a condutividade
do ar aumenta indiscriminadamente. A
corrente total atingindo a superfície é de
aproximadamente 1.800 ampères. Com
um potencial de 400 mil volts, isso gera
700 milhões de watts de potência. O que
mantém esse enorme dínamo?
A 50 quilômetros de altitude, o ar é um
excelente condutor. É como se a Terra
fosse envolvida por uma esfera metálica,
capaz de conduzir correntes horizontalmente. Mas, se cargas positivas caem sobre a superfície da Terra constantemente, o que a alimenta com as cargas negativas necessárias para neutralizá-las?
Existe aqui um equilíbrio de extrema
elegância. As cargas negativas são supridas por raios durante tempestades. Em
torno de 90% dos raios trazem cargas negativas para a superfície da Terra. Estima-se que cem raios caiam por segundo
sobre a superfície da Terra, com um pico
de atividade às 19h de Londres. (A floresta amazônica tem um papel fundamental nesse mecanismo regulador.)
Os detalhes de como raios são gerados
ficam para outro dia. Mas, na próxima
vez em que o leitor praguejar quando a
tempestade elétrica começar, lembre-se
de seu papel regulador da eletricidade
em nosso planeta, constantemente bombardeado por cargas vindas do espaço.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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