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Ciência em Dia
Nossos primos corais
Marcelo Leite
editor de Ciência
Qualquer pessoa sensata, mesmo leiga em biologia, diria que moscas
drosófilas são parentes mais próximas
dos seres humanos do que um recife de
corais. Quanto mais não seja, ao menos
por sua simetria bilateral, quer dizer, pelo fato de seus corpos poderem ser divididos em metades similares por uma linha imaginária, como os nossos.
Tal arquitetura está ausente dos milhares de pólipos que compõem o organismo coletivo dos corais, um tipo de animal muito mais recuado na evolução,
coisa de mais de 500 milhões de anos.
Cada um deles é pouco mais que um saco dotado de sistema digestivo e de uma
rede primitiva de nervos. Apesar disso, a
análise de seus genes está revelando um
parentesco tão próximo quanto desconcertante com os vertebrados.
Antes da publicação de um trabalho de
David Miller e colegas da Universidade
James Cook, da Austrália, no periódico
"Current Biology" (www.current-biology.com), os biólogos moleculares partilhavam da opinião leiga, ou seja, acreditavam que as drosófilas eram geneticamente mais próximas dos vertebrados
que os corais. Como os homens são muito mais complexos que as moscas, raciocinavam que os genes necessários para
desenvolver essa complexidade eram invenções vertebradas recentes na linha do
tempo evolutivo.
Com isso, não faziam nada mais do
que seguir a noção, também ela intuitiva,
de que organismos complexos devem ter
genomas mais complexos. Novas funções exigem novos genes, óbvio. Ocorre
que nada, na ciência e particularmente
na biologia, é assim tão simples e linear.
Miller e seus colaboradores na aprazível cidade tropical de Townsville (nordeste da Austrália), ponto de partida para inúmeros cruzeiros à Grande Barreira
de Corais, decidiram testar a tese da inventividade genética dos vertebrados
comparando os genomas de homens e
moscas com o de pólipos da espécie de
celenterado Acropora millepora, muito
comum nos mares da região. Descobriram coisas surpreendentes: dos quase
1.400 fragmentos de genes estudados,
10% são partilhados só por humanos e
pelo celenterado, e apenas 1% o são exclusivamente pela mosca e pelo coral.
Pela lógica anterior, drosófilas e pólipos são anteriores a vertebrados e deveriam partilhar mais genes. A explicação
aventada pelo grupo de Miller no artigo
de dezembro é que as moscas dispensaram esses genes durante sua evolução,
mesmo no processo de se tornarem mais
complexas -uma idéia contra-intuitiva
até mesmo para cientistas genocêntricos.
Mais estranho ainda foi descobrir que
vários desses genes comuns a homens e
corais estão ativos no ultracomplexo cérebro humano. Seguindo a lógica estreita, nada teriam a fazer no celenterado,
que ostenta o mais simples sistema nervoso entre os animais. Uma das hipóteses levantadas em Townsville é que corais como o A. millepora descendam eles
mesmos de ancestrais mais complexos.
Nesse caso, os genes revalorizados pelos
vertebrados teriam permanecido nos corais como uma espécie de fóssil da complexidade perdida.
Vários estudos serão necessários para
testar essas novas hipóteses, mas nossos
primos corais já deixaram uma lição: a
evolução procede muitas vezes por caminhos tortuosos, e as marcas que fixa
nos genomas os fazem parecer mais com
palimpsestos do que com mapas.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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