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+ Marcelo Leite
Coleção de árvores
A Amazônia é uma
coleção de campinaranas, capoeiras, matas de igapó, florestas densas
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Na ofensiva contra a mata, os índios e os estrangeiros, o ministro da Defesa, Nelson Jobim,
deve achar que é marechal. Mas foi o
recém-chegado Roberto Mangabeira
Unger, seu colega de Assuntos Estratégicos, quem formulou a tática depreciativa de chamar a Amazônia de
"coleção de árvores".
Bons oradores (afora alguma limitação de prosódia) e amantes do paradoxo, os ministros usaram a expressão para valorizar a Amazônia ao mesmo
tempo em que desvalorizam a floresta. Argumentam que mais de 20 milhões de pessoas vivem lá.
Descobriram a pólvora. Mais que isso: toda a sua logística está voltada para entregá-la aos arrozeiros, madeireiros, grileiros, usineiros e sojeiros.
O chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, foi bem claro à revista
"Veja": "Ele acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a
soja, ele é soja".
Lamento dizer que os ministros de
Lula têm razão. A Amazônia é muito
mais que uma coleção de árvores.
Também é mais que uma coleção de
hidrelétricas, mais que uma coleção
de governadores e mais que uma coleção de votos.
A Amazônia é uma coleção de ambientes. Tem grandes áreas de campos
naturais e de cerrado, que Lula e seu
ministro da Agricultura, Reinhold
Stephanes, prefeririam ver cobertos
de soja, capim e cana.
A Amazônia é uma coleção de campinaranas, capoeiras, matas de igapó,
florestas densas e florestas abertas.
Cada um desses ambientes constitui
uma coleção única de plantas.
Em matéria de vegetais, a Amazônia
tem a maior coleção do planeta. Não
em número de árvores individuais,
provavelmente, porque as florestas
boreais do hemisfério Norte, conhecidas como taiga, são mais extensas.
Em quantidade de espécies de plantas, porém, a Amazônia é uma coleção
sem rival: 40 mil, estima-se. Vale dizer, uns 13% do total do planeta.
A Amazônia é uma coleção de espécies peixes de água doce: entre 3.000 e
9.000 (quase um terço dos que existem na Terra). Uma coleção de borboletas: 1.800 (24%). Uma coleção de
aves: 1.300 (13%). Uma coleção de
abelhas: 2.500 a 3.000 (10%).
A Amazônia é uma coleção de gentes: 180 aikanãs, 94 ajurus, 6 akunsus,
192 amanaiés, 87 amondawas, 182
anambés, 317 aparais, 278 apolimas-araras, 3.256 apurinãs, 569 arapaços,
271 araras-ukaramãs, 332 araras-shawanawas, 339 arauetés, 29 aricapus,
69 aruás, 969 ashaninkas, 384 asurinis do Tocantins e 124 asurinis do
Xingu. Isso na letra A, de Amazônia.
Na Z, há 177 zo'és e 144 zuruahãs. Só
esses povos de A e de Z falam uma coleção de famílias lingüísticas: aikanã,
tupari, tupi-guarani, karib, aruak, tukano, pano, jabuti e mondé. Os dados
são do Instituto Socioambiental.
A Amazônia é uma coleção de culturas. Só a ignorância pode enxergar ali
uma coleção de índios aculturados reconvertidos em nações originais por
uma coleção de organizações multiculturalistas.
A Amazônia é também uma coleção
de terras indígenas: ali estão 99% de
mais de 1 milhão de quilômetros quadrados em quase 600 áreas identificadas, demarcadas ou homologadas.
Isso dá uns 13% do Brasil, que a
frente ofensiva não quer ver nas mãos
de apenas 480 mil índios. Grandes latifundiários, já se vê, com seus 200
hectares por pessoa de uma terra que,
na verdade, pertence à União e da qual
eles só têm o usufruto.
É essa a maior ameaça à integridade
nacional que os militares e seus comandantes reais ou imaginários conseguem detectar?
MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Brasil, Paisagens Naturais - Espaço, Sociedade e Biodiversidade nos Grandes Biomas
Brasileiros" (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia
cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br.
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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