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+ Marcelo Gleiser
O céu de Ulisses
Se os deuses podiam apagar o Sol por
minutos, poderiam fazê-lo para sempre
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Houve uma época em que os homens viviam bem mais próximos do céu. E o céu dos homens. Imagine um mundo sem luz
elétrica, esparsamente povoado, um
mundo praticamente sem tecnologia,
fora os arados dos campos e os metais
das ferramentas e das espadas. Nesse
mundo, os céus tinham um significado muito diferente do que têm hoje. A
sobrevivência das pessoas dependia
de sua regularidade e clemência.
Olhar para os céus e aprender os
seus ciclos era o único modo de marcar a passagem do tempo. Logo ficou
claro que os céus tinham dois temperamentos: um, bem comportado, repetitivo, como o nascer e o pôr do Sol a cada dia, as quatro fases da Lua e as
quatro estações do ano. Outro, imprevisível, rebelde e destruidor, o senhor
das tempestades e furacões, dos estranhos cometas que atravessam lentamente os céus com sua luz fantasmagórica e dos eclipses totais do Sol,
quando dia virava noite e as estrelas e
os planetas faziam-se visíveis e o Sol
tingia-se de um negro profundo.
Os céus eram mágicos, a morada
dos deuses. O significado da vida e da
morte, a previsão do futuro, o destino
dos homens, tanto o dos líderes quanto o de seus súditos, estavam escritos
nos astros. Fenômenos celestes inesperados eram profundamente temidos. Dentre eles, os eclipses eram dos
piores: se os deuses podiam apagar o
Sol por alguns minutos, certamente
poderiam fazê-lo permanentemente.
Eclipses eram uma amostra do fim
dos tempos.
No mês passado, dois astrônomos
publicaram um estudo no prestigioso
jornal acadêmico americano "PNAS"
("Proceedings of the National Academy of Sciences") em que argumentam que o famoso poema épico de Homero, a "Odisséia", faz referência a
um eclipse que ocorreu de fato no mar
Egeu dia 16 de abril de 1178 a.C. [Ciência, 24/6/08]. A idéia não é nova, tendo sido proposta cem anos atrás por astrônomos interessados em datar o
saque de Tróia e o retorno do herói
Odisseu (Ulisses para os Romanos)
para sua adorada (e extremamente paciente) Penélope, que esperou por dez
anos. A novidade do novo trabalho é a
confluência de outros eventos astronômicos que dão apoio à tese de que
Homero tinha o eclipse em mente
quando escreveu as famosas linhas: "O
Sol sumiu do céu e uma escuridão funesta cobriu tudo!"
Vasculhando o texto do misterioso
bardo cego, os astrônomos encontraram referências à lua nova, condição
básica para um eclipse total, às estrelas usadas por Odisseu para se orientar no retorno à casa e à aparição de Vênus na madrugada logo antes da
chegada em Ítaca.
O mais fascinante da descoberta é
que Homero supostamente escreveu a
Odisséia no final do século 8º a.C.,
mais de 400 anos após o evento. Não
existem quaisquer relatos de eclipses
datando de antes do século 8º a.C. (Se
existiram, foram perdidos.) O fato de
Homero ter mencionado o eclipse
mostra o imenso efeito que o fenômeno exercia. O terror que despertou ficou gravado na memória coletiva, passado oralmente de geração em geração, até chegar aos ouvidos do poeta,
que o usou magistralmente para realçar o clima da vingança de Ulisses,
quando mata aqueles que cobiçavam a
mão (e o corpo) de sua Penélope.
Existe aqui uma bela complementaridade entre ciência e arte. Ao mesmo
tempo em que o poeta usa alegoricamente um fenômeno celeste em seu
texto para tornar mágico um momento extremamente dramático em sua
história, a regularidade dos céus, descrita pelas leis da gravitação de Newton, permite que o passado celeste seja reconstruído em detalhe. Homero sabia bem que, quanto mais realista a ficção, maior o seu impacto.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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