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Em nome da ciência
Autora de best-seller sobre cadáveres, Mary Roach investiga vida dura dos pesquisadores do sexo em novo livro
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
Em nome do bom jornalismo, muitos repórteres já correram o
risco de tomar o lugar
dos sujeitos de suas
observações. Um jornalista escrevendo sobre a Polícia Militar pode se alistar como recruta, por exemplo, para mostrar
como é a vida no quartel. Alguém investigando trabalho
escravo pode tentar emprego
num canavial. Mary Roach, porém, é repórter de ciência. Para
mostrar como é a pesquisa de
ponta em fisiologia sexual, seu
plano de infiltração foi aliciar
seu marido para fazer sexo
dentro de um laboratório.
O mundo já pode agradecer à
bravura de Roach pelo primeiro registro científico de uma
cópula humana com uma nova
máquina de ultra-som que faz
filmes tridimensionais. (O técnico que fez as imagens teve de
ficar debruçado sobre o casal
durante o ato para registrar tudo.) Sensacionalismo à parte, o
panorama que a americana traça em seu novo livro, "Bonk"
(gíria sonora para sexo; algo como "créu"), é o relato fiel de um
universo de cientistas que, ainda hoje, trabalham em condições quase clandestinas.
Em boa parte do livro, as fontes de Roach são acadêmicos
que relatam dificuldade incomum para conseguir financiar
seus estudos -algo surpreendente quando se pensa em um
assunto do qual as pessoas gostam tanto. Certamente, Sigmund Freud teria algo a dizer
sobre o assunto -ainda mais
em um país puritano que tem a
maior indústria pornográfica
do mundo. "Bonk", porém, se
propõe a retratar cientistas que
adotaram uma abordagem
mais "empírica" sobre o tema,
com todas as dores e prazeres
que essa palavra implica.
Entre os personagens dessa
história está Robert Latou Dickinson, o ginecologista que,
nos anos 1890, tentou mostrar
que a masturbação feminina
era uma experiência normal.
Um século depois, após pesquisas terem mostrado que a "autoestimulação" até ajuda mulheres com problemas de libido, o assunto ainda é tabu. Jocelyn Elders, ministra de saúde
do governo Bill Clinton, perdeu
o cargo após dizer num discurso que a masturbação deveria
ser ensinada. (Isso, claro, antes
de o mundo inteiro saber sobre
o esperma do presidente no
vestido da estagiária.)
Ciência no sótão
Essa hipocrisia secular, defende Roach, surge da noção de
que só os aspectos reprodutivos do sexo podem ser objeto
de pesquisa "séria" em fisiologia. Desejo e prazer não são
considerados tema de saúde.
Não é de surpreender que até a
década de 1970 os cientistas
nem sequer conseguissem publicar sobre o assunto.
O primeiro grande livro-texto sobre o assunto, de 1966,
"Human Sexual Response", de
William Masters e Virginia
Johnson, foi inteiro estruturado em estudos menores que haviam sido rejeitados por revistas científicas. Mesmo sem saber que a maioria dos voluntários daquele projeto de pesquisa eram prostitutas, o meio acadêmico não foi receptivo.
O personagem retratado por
Roach que mais captura o imaginário americano, porém, é Alfred Kinsey, o biólogo que
montou um laboratório-motel
no sótão de sua casa para sessões clandestinas de observação científica do seu objeto de
estudo, na década de 1940. Entre os voluntários estavam pessoas recrutadas na vizinhança,
amigos de Kinsey e ele próprio.
Quando seus trabalhos começaram a atrair a atenção da imprensa, porém, rumores sobre
casos extraconjugais e práticas
sexuais não-convencionais no
famoso porão acabaram abalando um pouco seu prestígio.
Figuras controversas e casos
em que voluntários e pesquisadores se confundem, aliás, são
freqüentes em "Bonk". Estudos
do colombiano Heli Alzate, que
recrutou prostitutas para estudar a sensibilidade erógena da
vagina, enumeram diversas
constatações obtidas por "observação participante".
Roach viajou a França, Dinamarca, Taiwan, Egito e outros
países para investigar como diferentes culturas lidam com a
ciência do sexo. O esqueleto de
"Bonk", porém, é estruturado
em questões que atormentaram -e ainda atormentam- os
cientistas. A distância vaginoclitorial influencia o prazer da
mulher? É possível separar totalmente os fatores físicos e
psicológicos que levam à ereção? Qual é a função evolutiva
do orgasmo feminino? Surpreende saber quanto as respostas ainda são incertas.
Sexo e morte
Quem está atrás de respostas
talvez não encontre em Roach
um alento. "Bonk", porém, é
um excelente panorama sobre
o que a ciência do sexo produziu e produz, a despeito de falta
de dinheiro e de reconhecimento. O livro é "sério", mesmo sendo hilariante.
"Estudar sexo em laboratórios nunca foi fácil, seguro ou
bem-pago", diz. "Estudo por estudo, os ganhos parecem pequenos e (...) fúteis, mas a soma
de tudo o que se aprendeu -o
tango dançado entre a cultura
acadêmica e a popular- nos levou a um lugar mais feliz."
De um jeito ou de outro, tendo sido autora de "Stiff", um
best-seller sobre o uso de cadáveres na ciência, Roach não parece estar mesmo preocupada
com reputação. "As pessoas
achavam que eu era obcecada
por mortos", diz. "Agora que eu
escrevi sobre sexo e morte, sabe
Deus o que falam de mim."
LIVRO - "Bonk" Mary Roach; W.W.Norton & Co.;
319 págs.
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