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O NADA QUE EXISTE
Divulgação
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Concepção artística mostra buraco negro engolindo partículas ao seu redor, enquanto a matéria no chamado disco de acreção, próximo do centro, emite fortes pulsos de raios X |
Interpretação dos buracos negros, os objetos mais paradoxais do Universo, gera racha científico e estimula busca por conciliação entre a relatividade e a mecânica quântica
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Salvador Nogueira
da Reportagem Local
O ano é 1916. Não bastasse o forte cheiro de
queimado, o ar que envolve um destacamento do exército alemão na frente de batalha russa é permeado pela ansiedade. Não que as forças
inimigas estivessem oferecendo grande ameaça à aliança austro-germânica naquele janeiro. Mas uma guerra é sempre uma guerra. Ao cair da noite, tentando tirar da
cabeça a presença soturna do ceifeiro da morte, o tenente de artilharia Karl Schwarzschild brinca com seu novo passatempo. O matemático judeu-alemão tornado soldado manipula avidamente as equações da teoria da relatividade geral, recém-concebidas por seu compatriota Albert Einstein. Sem muita dificuldade, ele engendra a primeira solução para o conjunto de fórmulas, que descrevem a geometria quadridimensional do espaço-tempo, para calcular a ação da gravidade em torno de uma estrela. Com a iniciativa, embora não tenha sobrevivido
à guerra para testemunhar, ele se torna o pivô de uma
nova batalha. Uma que não traria fatalidades, pois não
seria travada com fuzis e canhões, mas com cálculos e
observações. E que perturbaria, e ao mesmo tempo fascinaria, as mentes de gerações de físicos e astrônomos que viriam depois dele, se arrastando até os dias de hoje. Nascia a concepção teórica dos buracos negros.
Schwarzschild queria só demonstrar matematicamente como a gravidade atuava ao redor e no interior das estrelas. Ao fazer os cálculos, entretanto, ele descobriu um incômodo trinco na esmerada vidraça einsteiniana. A teoria só parecia funcionar para as estrelas que tivessem um raio superior a um determinado valor. Se ele mantivesse a mesma massa para a estrela, mas associasse a ela um raio menor do que esse limite, ou seja, apresentasse um sistema em que muita massa estivesse concentrada em um espaço muito pequeno, aumentando absurdamente a densidade do objeto, os resultados apresentados pela solução de Einstein ao problema da gravitação simplesmente enlouqueciam.
Os resultados foram apresentados à comunidade
científica com um estrondo. "Esse sujeito errou nos
seus cálculos ou a relatividade está mesmo errada?"
-questionaram os físicos. Acontece que as contas estavam certas e a teoria também. Os físicos teóricos e experimentais se satisfizeram, então, em aceitar um acordo:
está tudo certinho com Einstein e Schwarzschild, mas
alguma coisa no resto da natureza impediria que uma
estrela chegasse a um tamanho menor que seu correspondente raio de Schwarzschild (que varia com a quantidade de massa -para que o Sol virasse um buraco negro, por exemplo, seria preciso comprimi-lo em uma
esfera com 6 km de diâmetro). Qual não foi a decepção
depois que se descobriu que a teoria de evolução estelar
permitia que astros gigantes, depois de consumirem todo o seu combustível e explodirem, pudessem se comprimir e atingir um tamanho menor que seu raio de
Schwarzchild, isolando-se do resto do Universo e criando um chamado buraco negro, em cujo interior existe
uma singularidade, que representa nada menos que um
rombo no espaço-tempo, ou seja, um objeto estelar cuja
densidade é tão grande que nada escapa dele, nem a luz.
É um Universo particular, fechado sobre si mesmo.
Quando as primeiras evidências observacionais da
existência de objetos assim foram encontradas (como
estrelas que pareciam estar girando loucamente em torno de coisa alguma), elas se tornaram uma vitória estupenda para os físicos relativistas -aqueles que acreditam que a teoria de Einstein expresse a verdade sobre a
natureza da gravitação. Afinal de contas, um buraco negro, em sua essência, é a manifestação mais contundente e absurda das previsões relativistas. Em compensação, com a verificação do fenômeno na realidade, o tema deixou o âmbito teórico e passou a habitar a mente
dos astrofísicos -era possível, agora, estudar esses objetos não só com a mente, a partir de equações, mas
também com os olhos, usando de observações. Isso
produziu uma rachadura de abordagens.
"Físicos teóricos e astrofísicos estão interessados em
aspectos distintos dos buracos negros", afirma George
Matsas, um relativista do Instituto de Física Teórica da
Unesp (Universidade Estadual Paulista). "Nós procuramos entender os buracos negros conceitualmente através da matemática, enquanto eles estão mais interessados nos efeitos observacionais desses astros no meio interestelar vizinho." E isso leva, é claro, a formas diferentes de interpretar o fenômeno. Enquanto os teóricos
gostam dos buracos negros pelo que eles não podem
ver -o raio de Schwartzchild e o que está dentro dele,
tentando aí conciliar a relatividade com a mecânica
quântica-, os astrofísicos gostam mais do que é possível observar do lado de fora do raio. Alan Marscher, um
astrofísico da Universidade de Boston, nos EUA, publicou recentemente um estudo na revista "Nature" explicando um fenômeno peculiar aos discos de acreção (a
matéria que gira em torno do buraco negro, prestes a
ser engolida). Em uma terminologia pouco elegante, ele
identificou como é o "arroto" de um buraco negro.
Ralo cósmico
Esses objetos, como se sabe, são vorazes glutões cósmicos. Como se fossem um ralo espacial, eles atraem grande quantidade de matéria ao seu redor,
que entra num rodopio cada vez mais acelerado antes
de encontrar seu destino final no horizonte de eventos
-a fronteira imaginária que separa o buraco negro do
resto do Universo- e desaparecer para sempre. Durante esse processo, a matéria circundante emite radiação. Cada vez que o buraco negro "dá uma mordida"
em um pedaço do disco de acreção, antes de sumir de
vista, a matéria emite um pulso de raios X, a velocidades
relativísticas (que, segundo os astrofísicos, aparentam
ser superiores à velocidade da luz, mas, segundo os teóricos relativistas, não passam de um efeito ilusório, dado que a velocidade da luz é a máxima permitida no Universo einsteiniano). Cerca de um mês depois, a borda exterior do disco de acreção emite ondas menos
energéticas, em frequência de rádio. Marscher e seus
colegas passaram três anos observando o centro da galáxia 3C120, onde deve haver um buraco negro gigante,
para apontar o elo entre emissões de raios X e de rádio.
"Teria sido mais fácil identificar isso com o buraco negro que reside no centro da Via Láctea, que está bem
mais próximo, mas ele está morrendo de fome", diz
Marscher. "Parece haver pouca matéria para ele engolir
no momento e ele não está emitindo muitos raios X."
A pesquisa de Marscher é a típica de um estudioso
pragmático de buracos negros. Mas até ele confessa que
não está nada satisfeito com a limitação imposta pelo
raio de Schwarzchild, que só permite aos teóricos adentrar os mistérios que se escondem além dali. Para ele e
para muitos astrofísicos ainda é forte a crença de que algo deve impedir o absurdo efeito de rompimento do
próprio tecido do espaço causado pelo excesso de matéria e energia concentradas em uma região muito pequena. Talvez a solução surja quando a mecânica quântica
se unir à relatividade no estudo de buracos negros.
Acertando as contas
É sabido, desde as contas de Schwarzchild, que a relatividade não faz muito sentido no interior de um buraco negro. A mecânica quântica,
que descreve o comportamento das coisas no mundo
atômico e subatômico, precisa ser incluída na mistura
para que todos os efeitos físicos sejam descritos. O grande problema é que as duas grandes teorias da física
-ela e a relatividade- não se bicam. As duas não casam de jeito nenhum.
Depois de muito bater cabeça, alguns pesquisadores
conseguem alguns pequenos pontos de intersecção.
Quando isso acontece, efeitos não-previstos pela teoria
de Einstein começam a emergir. O físico britânico Stephen Hawking, por exemplo, especula que buracos negros emitem radiação (não o disco de acreção, mas a
própria singularidade) e que evaporam, ao longo de trilhões de anos. Já uma dupla de cientistas, Pawel Mazur e
Emil Mottola, respectivamente da Universidade da Carolina do Sul e do Laboratório Nacional de Los Alamos,
sugere que a radiação Hawking não existe. Aliás, eles
acham que nem buracos negros existem.
Incluindo efeitos extraídos da mecânica quântica, os
dois chegaram a uma solução da teoria da relatividade
em que a contração da estrela não leva a um colapso do
espaço-tempo, formando uma singularidade, mas é interrompida pouco antes disso. A idéia foi batizada pelos
dois com o nome de gravastar, e eles dizem que seria
possível identificar se os objetos que estão lá fora são
buracos negros tradicionais ou as novíssimas gravastars, graças a diferenças sutis na radiação que seus discos de acreção emitem. Não é difícil concluir que estudos como o de Marscher, envolvendo as minúcias das
emissões de radiação desses objetos, se tornarão ainda
mais importantes no futuro para esclarecer a questão.
Físicos teóricos, como Matsas, são bastante céticos
com relação a idéias como a das gravastars. "Buracos
negros existem na natureza com quase 100% de certeza", ele costuma dizer. Já astrofísicos observacionais,
como Marscher, apreciam todo e qualquer esforço para
evitar que seu alcance de pesquisa, para não dizer o
bom senso no Universo, seja tragado por um horizonte
de eventos. "Eu não conheço bem as idéias [de Mazur e
Mottola", mas eu concordaria que seria muito bem-vinda uma teoria compatível com a relatividade em que não acontecesse o total colapso da estrela", argumenta.
O racha continua.
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