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Micro/Macro
Ciência e moralidade
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A percepção pública da ciência é, com razão, repleta
de conflitos. Alguns acreditam que a ciência seja a
chave para a liberdade do homem, para a melhora das
condições de vida de todos, para a cura dos tantos males
que afligem pobres e ricos, desde a fome até as mais variadas doenças. Já outros vêem a ciência com grande
desconfiança e até com desprezo, como sendo a responsável pela criação das várias armas de destruição inventadas através da história, da espada à bomba atômica.
Para esse grupo, os homens não são maduros o suficiente para lidar com o grande poder que resulta de
nossas descobertas científicas.
No início do século 21, a clonagem e a possibilidade de
construirmos máquinas inteligentes prometem até
mesmo uma redefinição do que significa ser humano.
Na medida em que será possível desenhar geneticamente um indivíduo ou modificar a sua capacidade
mental por meio de implantes eletrônicos, onde ficará a
linha divisória entre homem e máquina, entre o vivo e o
robotizado? Entre os vários cenários que vemos discutidos na mídia, o mais aterrorizador é aquele em que nós
nos tornaremos forçosamente obsoletos, uma vez que
clones bioeletrônicos serão muito mais inteligentes e resistentes do que nós. Ou seja, quando (e se) essas tecnologias estiverem disponíveis, a ciência passará a controlar o processo evolutivo: a nossa missão final é criar seres "melhores" do que nós, tomando a seleção natural
em nossas próprias mãos. O resultado, claro, é que terminaremos por causar a nossa própria extinção, sendo
apenas mais um elo na longa cadeia evolutiva. O filme
"Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, relata precisamente esse cenário lúgubre para o nosso futuro, a
inventividade humana causando a sua destruição final.
É difícil saber como lidar com essa possibilidade. Se
tomarmos o caso da tecnologia nuclear como exemplo,
vemos que a sua história começou com o assassinato de
centenas de milhares de cidadãos japoneses, justamente pela potência que se rotula o "lado bom". Esse rótulo,
por mais ridículo que seja, é levado a sério por grande
parte da população norte-americana. É o velho argumento maquiavélico de que os fins justificam os meios:
"Se não jogássemos as bombas em Hiroshima e Nagasaki, os japoneses jamais teriam se rendido e muito
mais gente teria morrido em uma invasão por terra", dizem as autoridades militares e políticas norte-americanas. Isso não só não é verdade como mostra que são os
fins político-econômicos que definem os usos e abusos
da ciência: os americanos queriam manter o seu domínio no Pacífico, tentando amedrontar os soviéticos que
desciam pela Manchúria. As bombas não só detiveram
os soviéticos como redefiniram o equilíbrio de poder no
mundo. Ao menos até os soviéticos desenvolverem a
sua bomba, o que deu início à Guerra Fria.
As consequências de um conflito nuclear global são
tão horrendas que até mesmo os líderes das potências
nucleares conseguiram resistir à tentação de abusar de
seu poder: criamos uma guerra sem vencedores e, portanto, inútil. Porém, as tecnologias nucleares não são
propriedade exclusiva das potências nucleares. A possibilidade de que um grupo terrorista obtenha ou construa uma pequena bomba é remota, mas não inexistente. Em casos de extremismo religioso, escolhas morais
são redefinidas de acordo com os preceitos (distorcidos) da religião: isso foi verdade tanto nas Cruzadas como hoje, nas mãos de suicidas muçulmanos. Eles não
hesitariam em usar uma arma atômica, caso a tivessem.
E sentiriam suas ações perfeitamente justificadas.
Essa discussão mostra que a ciência não tem uma dimensão moral: somos nós os seres morais, os que optamos por usar as nossas invenções de modo criativo ou
destrutivo. Somos nós que descobrimos curas para
doenças ou gases venenosos. Daí que o futuro da sociedade está em nossas mãos e será definido pelas escolhas
que fizermos daqui para a frente. Essas escolhas se fazem presentes a toda vez que é desenvolvida uma nova
tecnologia com poderes destrutivos. Agora, devemos lidar com a clonagem e seus abusos. Será que devemos
impor limites às pesquisas envolvendo clones humanos? Será que impor limites irá adiantar alguma coisa?
Afinal, a história nos mostra que as tecnologias "vazam", não podem ser escondidas para sempre. No futuro não muito distante, teremos de lidar com o que significa ter uma máquina que pensa ou, mais realisticamente, uma máquina tão veloz que simula o pensamento.
Não é da ciência que devemos ter medo, mas de nós
mesmos e da nossa imaturidade moral.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu".
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