|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Independência e Marte!
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Este é um período difícil para os entusiastas da exploração espacial: a
agência americana Nasa está comendo
fogo após o relatório da comissão que
examinou os motivos da trágica explosão do ônibus espacial Columbia. O Brasil, por sua vez, perdeu o seu terceiro foguete na base de Alcântara.
Ambos os acidentes custaram vidas
humanas e, como na maioria dos acidentes causados por falhas técnicas, poderiam ter sido evitados. Tal como em crimes, é sempre bem mais fácil achar os
culpados após a sua ocorrência. O duro é
construir um sistema tão robusto que seja à prova de falhas e acidentes. Ou uma
sociedade à prova de crimes.
Seria bom se a mesma dedicação fosse
despendida tanto antes do acidente
quanto depois. Mesmo que esse seja, obviamente, o objetivo de qualquer agência
espacial -ninguém gosta de falhar-,
na prática a situação é bem mais complicada: testes e controle de qualidade são
custosos e dependem tanto da disponibilidade de pessoal treinado quanto de
uma flexibilidade burocrática que é rara
em grandes agências.
O que fazer, então? Suspender a corrida espacial? Impossível. No caso do Brasil, é imprescindível que o país atinja ao
menos um nível básico de independência em tecnologia espacial, de modo a
não ter de pagar à França, aos EUA ou à
China para lançar os seus satélites. Aqueles que argumentam que o Brasil tem já
muitos problemas e que lançar foguetes
é uma tolice que deveria ser abandonada
estão confundindo as bolas. Tomar conta de educação, saúde e fome da população não exclui o desenvolvimento de tecnologias de ponta no país.
Existe mesmo uma relação dual, aqui:
sem um time de engenheiros e cientistas
treinados, fica impossível atingir essa hegemonia tecnológica. E, sem programas
de incentivo educacional, fica difícil motivar os jovens a seguirem carreiras nessas áreas. Quantas crianças não sonham
em ser astronautas? Ou, ao menos, engenheiros aeroespaciais? Será que é tão absurdo assim pensar que, um dia, um brasileiro viajará à Lua numa espaçonave
brasileira? E que será a bandeira do Brasil
que iremos ver fincada na sua superfície?
Não será mais absurdo achar que isso é
impossível, que nós jamais seremos capazes de tal feito tecnológico? Que o nosso negócio é só com samba e futebol?
Enquanto isso, Marte brilha nos céus
com uma luz que não se via há quase 60
mil anos e que demorará mais 281 anos
para ser repetida. Escrevo este ensaio na
noite em que o planeta vermelho atingiu
a sua proximidade maior, 56 milhões de
quilômetros. Saí de casa em torno das
22h e olhei na direção sudoeste, onde o
planeta surge aqui na Nova Inglaterra.
Marte era o objeto mais brilhante nos
céus, uma explosão de luz alaranjada
ofuscando tudo mais que piscava ao seu
redor. E me lembrei de como vi o mesmo
planeta há duas semanas, nascendo juntamente com a Lua minguante nos céus
de Búzios, no Rio de Janeiro. Era o mesmo planeta, lá e cá, mas sem dúvida mais
belo lá, flutuando sobre a baía da Ferradura, do que cá, onde surgiu sobre uma
floresta de pinheiros.
Para quem cresceu olhando para o
Cruzeiro do Sul, um céu sem ele não é
tanto um céu quanto um amontoado de
estrelas. Belíssimas, mas apenas isso.
Não deveremos aprender nada de novo com a proximidade de Marte. Afinal,
sondas já pousaram no planeta, e uma
nova esquadrilha se dirige para lá no
momento. A aproximação celebrada
não tem tanto valor científico quanto
cultural. As pessoas têm um enorme
fascínio por Marte, o deus da guerra,
que por tanto tempo inflou os sonhos
de tantos com a possibilidade de vida
extraterrestre.
Hoje, sabemos que, se existiu vida lá,
foi só em um passado distante, quando
Marte supostamente tinha um ambiente mais hospitaleiro aos compostos de
carbono que executam alguma forma
de metabolismo. Isso não significa que
o planeta seja menos interessante.
Vulcões extintos recentemente, vales
e enormes montanhas, a presença de
água, tudo isso contribui para aguçar a
curiosidade. Ao aprendermos sobre
Marte estamos aprendendo sobre nós
mesmos, sobre a história do Sistema
Solar.
E, quem sabe, um dia isso não será feito com espaçonaves brasileiras? Absurdo? Espero que não.
Independência e Marte!
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor
do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: +ciência: Inquisição digital Próximo Texto: Ciência em Dia: De olhos bem fechados Índice
|