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Ciência em Dia
De olhos bem fechados
Marcelo Leite
editor de Ciência
Esquiar na neve é uma dessas experiências únicas que a espécie humana
presenteou a si mesma por meio da cultura e da invenção, da capacidade de
projetar-se no próprio ambiente por
meio de artefatos e próteses -no caso,
um imprescindível par de esquis. Basta
um pouco de coragem motora e olhos
bem abertos, pois do restante se encarregam a gravidade e o atrito reduzido.
Não foi esse, porém, o caso de MM, que
se tornou personagem incógnito de um
artigo científico na revista "Nature Neuroscience" (www.nature.com/neuro),
publicado eletronicamente em 24 de
agosto. Um acidente aos três anos e meio
inutilizou seu olho esquerdo e cegou o
direito, com danos na época insanáveis à
córnea. Tinha apenas alguma percepção
de luminosidade, mas nenhuma experiência de forma ou cor.
Uma série de complicações impediu
por 40 anos que MM recebesse um transplante de córnea, até que as dificuldades
pudessem ser contornadas com o auxílio
de células-tronco (um tipo básico de célula, que guarda alguma capacidade de
diferenciar-se em tipos celulares mais específicos). Aos 43 anos, voltou a ver. Melhor dizendo, aos 43 anos seu olho direito voltou a ver. MM ainda teria de dar
duro para voltar a enxergar.
MM virou "paper" na revista porque
seu caso exemplificava, com detalhes, algo que neurocientistas sabem há tempos, mas que a maioria das pessoas talvez não se dê conta: não é o olho que
"vê", mas sim o cérebro. Bebês nascem
com olhos funcionais, mas seus cérebros
precisam de tempo para ligar as conexões necessárias para processar os impulsos originados do olho e formar imagens coerentes, interpretar distâncias e
velocidades, distinguir forma de fundo,
avaliar volumes e posições com base em
pistas de luz e sombra. Em poucas palavras, a faculdade da visão depende da experiência da visão para consolidar-se.
Foi disso que MM ficou privado por 40
anos, e seu caso também demonstra que
mesmo após os 42 meses de idade circuitos neurais fundamentais estão sendo
montados. O resultado é que, cinco meses após a cirurgia restauradora da visão
ocular, MM só era capaz de reconhecer
formas simples e cores, além de diferenciar algumas texturas. Penava, no entanto, para identificar formas tridimensionais formadas por linhas, como cubos,
ou para lidar com a transparência de figuras superpostas, por exemplo.
O mais curioso é que MM, tendo
aprendido a esquiar ainda cego, com ajuda de instruções verbais de um guia, tornou-se incapaz de fazê-lo quando voltou
a ver. A profusão vertiginosa de informações luminosas, que seu cérebro era incapaz de registrar e interpretar na velocidade necessária, o deixava em pânico e
provocava quedas sucessivas. Esquiar,
para ele, nos primeiros meses, só mesmo
de olhos bem fechados.
Dois anos após a operação, narra o artigo de Ione Fine e de um time de pesquisadores de várias instituições da Califórnia (EUA), MM tinha feito progressos na
sua capacidade de discriminar formas e
movimentos. Começou a usar dicas como padrões de sombreamento da neve
para estimar a inclinação das rampas,
por exemplo. Usa cada vez mais a visão
recuperada na vida cotidiana, até mesmo
para esquiar de olhos abertos, mas tem
consciência de que algo se perdeu: "A diferença entre hoje e há dois anos é que
agora consigo adivinhar melhor o que
estou vendo. O que não mudou é que eu
continuo adivinhando".
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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