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Micro/Macro
Antes do começo
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Antes do começo, o que existia? O nada? Como pensar sobre o nada sem
supor a existência de algo? O nada faz
sentido por si só? Ou ele precisa de seu
oposto -o tudo- para ter significado?
Não seria, talvez, melhor pensar em espaço e ausência de espaço, o vazio? Mas,
se no início existia apenas o vazio, de onde então surgiram o cosmo, a matéria, o espaço no qual ela se move e cria formas
complexas, algumas até vivas? Como algo material pode surgir do nada, que por
definição é imaterial?
Perguntas como essas vêm assombrando e inspirando a humanidade desde os seus primórdios. A resposta mais
popular lança mão da fé: no Ocidente, foi
um Criador que fez tudo a partir do nada. Mas essa é apenas uma versão. Existem muitas, espalhadas pelo mundo e
pelo tempo. Para o povo maori, da Nova
Zelândia, o mundo surgiu do nada, sem
a ação de nenhum ser sobrenatural, sem
que antes existisse qualquer coisa: o cosmo simplesmente surgiu, de repente,
produto de uma ânsia abstrata de algo
concreto existir.
Tenho certeza de que vários leitores já
se perguntaram sobre isso, talvez tenham passado noites ao pé de uma fogueira com os amigos, olhando para o
céu repleto de estrelas, tentando entender o porquê disso tudo, do mundo à
nossa volta. Por que o mundo? Por que
nós? O nada não é muito mais simples?
Surge a ciência, e a secularização da sociedade moderna força uma retomada
dessas antigas questões. Mas agora, sob
as suas lentes racionais, precisas, quantitativas e verificáveis. O que a ciência tem
a dizer sobre essas questões, sobre a criação de todas as coisas? O que ela tem a dizer sobre o porquê de as coisas existirem?
Nada. A ciência não explica o porquê
das coisas. Ela explica o como. Na verdade, esse tipo de pergunta, o porquê, não é
província do discurso científico. Partículas com cargas elétricas são atraídas
umas às outras. Daí entendemos os átomos, a estrutura das moléculas, as reações químicas em que elétrons são trocados entre elementos ou atraídos e repelidos por eles. Por que cargas elétricas
opostas se atraem? Não sabemos. Mas
entendemos como elas se atraem e, a
partir disso, criamos toda uma sociedade
movida a eletricidade, tecnologias digitais que dependem de nossa compreensão dos átomos, lasers etc.
Por que objetos são atraídos uns aos
outros pela força que chamamos de gravidade? Também não sabemos. Mas sabemos descrever como eles se atraem e, a
partir disso, podemos descrever como os
planetas giram em torno do Sol, como as
estrelas nascem e morrem, como as galáxias são formadas, como o Universo se
expande há já 14 bilhões de anos, e cada
vez mais rapidamente.
Falando em expansão, voltemos à pergunta inicial. Afinal, se o Universo está
em expansão, ele foi menor antes. Melhor dizendo, as distâncias entre os vários objetos que o compõem eram tanto
menores quanto mais perto do momento inicial, do tempo zero. Nesse caso, no
tempo zero, tudo deveria estar amontoado em um único ponto. É isso? Tudo cabe num ponto? E antes desse tempo zero? O que existia antes do começo?
Essas perguntas são província da ciência. Que alívio. A resposta é, talvez, desencorajadora: não é possível falarmos
sobre antes do começo, pois antes do começo o tempo simplesmente não existia.
Seria como tentar descobrir o que existe
ao norte do pólo Norte. Ou quem era você antes de seus pais o conceberem.
Mais sofisticadamente, o conceito de
tempo tal como o entendemos em nosso
dia-a-dia, o tique-taque constante e regular do passar das horas, não faz sentido perto da origem do Universo. A física
que usa esse tempo uniforme e familiar
não funciona nas condições extremas
que reinavam nos primórdios cósmicos.
A realidade não é descrita por um espaço
inerte e por um tempo regular, fluindo
como um rio. Tanto espaço quanto tempo flutuavam caoticamente: o espaço deformado em todas as direções e, em cada
ponto, um tempo diverso. Não existia
um "antes" antes do próprio tempo
-como o entendemos- existir.
Tinha razão santo Agostinho, quando
disse que o tempo veio com a Criação.
Mas e a Criação, de onde veio? De uma
flutuação quântica no Universo primordial, diz a cosmologia moderna. Do desejo inerente de algo existir, dizem os maoris. Sob a ótica da história, a pergunta é
mais importante do que a resposta.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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