|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
O descarrego de "Matrix Reloaded"
Marcelo Leite
editor de Ciência
Foram duas semanas de orelhas quentes, depois de publicado nesta coluna
o texto "O pastiche de "Matrix" ". Uma
autêntica descompensação da parte dos
fãs da trilogia dos irmãos Wachowski
(cujo nome saiu aqui grafado com um
"v" plebeu de permeio, deslize já retificado na seção "Erramos"), o tipo de gente que nem assistiu ainda ao terceiro filme e já gostou. Pessoas que não apreciam palavras incomuns e acreditam na Verdadeira Profecia do Oráculo, a de que "Matrix Reloaded" bateria todos os recordes
de bilheteria na estréia.
Os fãs têm lá sua razão. Como disse
Frank Rich num texto para o jornal "The
New York Times" reproduzido na Folha,
não dá para discutir com um filme que
arrecada US$ 135,8 milhões em apenas
quatro dias (ou US$ 214 milhões em duas
semanas, quase a metade de tudo que foi
amealhado pela primeira fita, "Matrix",
ao longo de quatro anos). São números
portentosos, mas não mudam a realidade: o recorde no final de semana da estréia nos EUA ainda pertence a "Homem-Aranha", com US$ 114,7 milhões,
contra US$ 93,3 milhões de "Reloaded".
Por essas e outras, já surgem piadas sobre o fenômeno "Matrix Unloaded", que
um tradutor irreverente poderia verter
como "Descarrego Matrix".
Pois é de descompensação que se trata,
parece, no sentido do dicionário: apesar
de todo seu esforço e de toda sua energia,
os aficionados não conseguem justificar
a manutenção do culto Matrix, pois o segundo filme é ainda mais superficial, farisaico e inverossímil que o primeiro.
Saem as referências adventícias e mais
ou menos cultas a filósofos do simulacro-mundo, e reforçam-se os subtons religiosos (ainda que Morpheus seja obrigado a reconhecer a instrumentalização
maquiavélica do próprio Oráculo).
Acentua-se a vocação "fashion" do filme
e sua idolatria pelo tal de "bullet time"
(tempo de bala, pois não?), um maneirismo cinetecnológico já trivializado pela
publicidade de TV. A obra vende profundidade, iludem-se os espectadores,
mas eles compram mesmo são os óculos
na banquinha à saída do multiplex de
shopping. E sonham, submersos na viscosidade real do consumo, com o dia em
que alçarão vôo na noite com as capas
para lá de "cool" de Neo ou Niobe.
Os fãs já são prisioneiros de uma matriz tecnomercadológica real, sem
maiúscula nem "x": Hollywood. Escreveram duas dezenas de mensagens de e-mail defensivas, para se manifestar particularmente irritados com a exigência de
verossimilhança aqui apresentada. A bobagem da produção de energia por pilhas humanas, por exemplo.
Houve até engenheiro tentando usar
argumento de autoridade técnica para
dizer que tal usina de carne seria possível, sim, ou que faz sentido a obrigatoriedade de conectar-se por linha de telefonia fixa para escafeder-se da rede. Deveria perguntar-se se não são só metáforas
canhestras da escravização do humano
pela máquina e de brechas de segurança
em sistemas de rede, respectivamente.
Ou, então, por que elas desapareceram
do primeiro plano na segunda fita.
Parafraseando uma velha piada acadêmica, seria o caso de dizer que a saga-franchise Matrix contém reflexões sérias
e relevantes sobre o tema da armadilha
tecnológica que ameaça o que resta do
humanismo -o problema é que suas reflexões sérias não são relevantes, e suas
reflexões relevantes não são sérias.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Antes do começo Índice
|