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Ciência em Dia
Homens são camundongos sem cauda
Marcelo Leite
editor de Ciência
Jamais escreveria a frase do título, não
fosse instado a isso por uma instituição do porte do Wellcome Trust, fundação britânica que financia o Centro Sanger, por sua vez o segundo mais importante instituto envolvido no sequenciamento (soletração) do genoma humano
-e também do genoma do camundongo, publicado há três dias na revista científica "Nature" (www.nature.com).
Tamanha enormidade se encontra
num comunicado à imprensa redigido
pelo Wellcome Trust e distribuído a jornalistas credenciados com acesso antecipado aos artigos da "Nature" (um serviço que lhes permite trabalhar durante
uma semana sobre o conteúdo das pesquisas, de modo a entendê-las melhor e,
com isso, se tornarem mais capazes de
fazê-las compreensíveis para o público).
O período completo diz literalmente:
"Seria possível dizer que nós somos essencialmente camundongos sem caudas
-mas nós até mesmo temos os genes
que poderiam fazer uma cauda".
É o cúmulo da simplificação e o supra-sumo do determinismo genético. Não dá
para imaginar um exemplo mais acabado dessa crença de que tudo que há numa pessoa (ou organismo), da cor dos
olhos ao comportamento mais peculiar,
seja determinado principal ou exclusivamente pelos genes, ou seja, pela sequência das letras num trecho de DNA. Como
a comparação dos genomas do homem e
do camundongo revelou uma coincidência de 99% entre os genes das duas espécies, algum redator concluiu que estava
autorizado a redigir a frase infeliz.
O texto que você tem em mãos foi escrito antes de sair a "Nature" com o genoma do camundongo, quinta-feira passada. Não havia como saber se a bobagem viria a ser assimilada por algum jornalista entre as centenas ou milhares deles cadastrados pelo sítio de acesso restrito da "Nature" (press.nature.com). Arriscaria prever que sim, pois ela tem todos os elementos de uma frase de efeito
e, imprudência das imprudências, foi
destacada no comunicado entre "Dez fatos e cifras do Projeto Genoma do Camundongo", como item 6 da lista.
O press release traz até uma variante citável da cincada, pela boca da cientista
Jane Rogers, chefe de sequenciamento
do Centro Sanger, em Cambridge (Reino
Unido), com exclamação e tudo: "Compartilhamos 99% de nossos genes com o
camundongo, e até mesmo temos os genes que poderiam fazer uma cauda!"
Longe desta coluna desmerecer a importância científica de soletrar o DNA do
camundongo, que se tornou o principal
animal-modelo da pesquisa biomédica.
Com o sequenciamento de seu genoma e
a possibilidade de cotejá-lo com o humano, decerto surgirão muitos lampejos sobre os mecanismos básicos da intricada
bioquímica de doenças importantes.
Mas exageração tem limite. Há muito
mais que uma cauda separando homens
de roedores, e não se trata aqui de superioridade moral, mas de complexidade
biológica, mesmo.
Mais importante é destacar, como faz
outro press release (da Universidade de
Genebra), a descoberta do grupo de
Stylianos Antonarakis na mesma "Nature", com base na análise do cromossomo
21 humano: de 3.491 trechos de DNA nele com correspondentes no camundongo, 2.262 não são de genes (só 1.229 apresentam as características necessárias para participar da síntese de proteínas). Ela
diz bem mais sobre o grau de exatidão do
conhecimento obtido com o sequenciamento: "O papel exato desses elementos
genômicos não-gênicos, mas importantes, é desconhecido, mas provavelmente
regulam a função de genes".
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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