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Na comemoração do centenário da aviação, iniciada pelos irmãos Wright
em 1903, o setor nos EUA enfrenta uma das maiores crises de sua história,
impulsionada por recessão econômica, terrorismo e estagnação tecnológica
A crise dos 100 anos
Associated Press
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Os irmãos Orville e Wilbur Wright posam para foto na soleira da porta de sua casa em Dayton, Ohio, em 1910; a dupla foi responsável pelas primeiras decolagens de um avião, em Kitty Hawk, Carolina do Norte (EUA) |
Salvador Nogueira
da Reportagem Local
Ainda existe a noção, para a maioria dos brasileiros, de que Alberto Santos Dumont foi o inventor do avião, fazendo o primeiro vôo registrado
da história com seu famoso 14-Bis em 1906. A
primazia do brasileiro em Paris foi por alguns poucos
anos defendida na Europa para justificar a superioridade tecnológica do Velho Mundo antes das Grandes
Guerras e mantida por outros tantos no Brasil. Mas hoje
são pouquíssimos os que discutem o fato de que a decolagem que inaugurou a era da aviação foi realizada pelo
Flyer de Orville e Wilbur Wright, em 17 de dezembro de
1903, em Kitty Hawk, Estado da Carolina do Norte, nos
EUA. Para o mundo todo, chegou com 2003 o ano em
que se comemora o centenário da aviação.
Embora ninguém mais questione o fato de os americanos terem voado primeiro, ainda há no Brasil quem
considere a versão "americana" da história ligeiramente distorcida em favor dos aviadores ianques. Isso pelo
fato de o primeiro vôo dos irmãos Wright ter sido feito
em segredo e de o avião da dupla ter precisado de ajuda
do vento para decolar, diferentemente do 14-Bis de Santos Dumont, que fez de sua primeira decolagem uma
demonstração pública e subiu aos céus por seus próprios meios, três anos depois.
Picuinhas à parte, o prêmio pode ser dividido com
justiça entre os pioneiros. Claramente os Wright estavam adiante no que diz respeito aos aspectos técnicos
do invento. É só olhar para a evolução do design dos
aviões modernos para entender que o legado do Flyer é
muito mais significativo do que o do 14-Bis, um beco
sem saída evolutivo que o próprio Dumont abandonaria pouco depois de criar.
Em compensação, não há quem discuta a enorme importância do inventor brasileiro na propagação do sonho da aviação. Diferentemente dos Wright, que abordaram o problema do vôo em veículos mais pesados
que o ar com o legítimo espírito americano (desde o início, os irmãos tinham um cuidado especial para patentear todas as inovações que introduziam na máquina de
voar), Santos Dumont era um humanista: ele queria levar o homem aos céus, mais do que tudo. Um de seus
modelos mais famosos de aeroplano, o Demoiselle, tinha os diagramas livremente distribuídos na Europa,
para que todos pudessem montar seu próprio veículo.
Nada de patentes, nada de restrições, nada de lucros.
Essa diferença entre os pioneiros da aviação na América e na Europa explica claramente os primeiros anos
da evolução da área. Enquanto os Wright gastavam seu
tempo processando todos os concorrentes que ousavam violar as patentes para aperfeiçoar o avião, os europeus promoviam intenso intercâmbio de informações.
"Os aviadores do Velho Mundo logo tomaram a dianteira tecnológica, e só vieram a perdê-la novamente para os americanos com o advento da Primeira Guerra
Mundial", diz Roger Launius, do Museu Nacional do Ar
e do Espaço da Smithsonian Institution, EUA.
Para os historiadores, a discussão sobre quem inventou o avião nem se coloca. "Até Orville e Wilbur entendiam que o avião não era uma única invenção, mas uma
série de invenções agrupadas", diz Peter Jakab, também
da Smithsonian Institution. "O mais importante", ele
prossegue, "é que os irmãos Wright foram os primeiros
engenheiros aeronáuticos da história." Eles combinavam pesquisa empírica com testes de vôo e valorizavam
a continuidade de projetos, segundo o historiador.
"Inovaram no uso de túneis de vento, criando instrumentos específicos para obter os dados que eles precisavam para fazer alterações no design do avião", conta.
"Com sua metodologia prática e mentalidade típica de
engenheiros, os irmãos Wright foram do primeiro modelo de pipa [que eles testavam literalmente empinando" ao avião em apenas três anos e meio."
Crise americana
Embora haja orgulho pelo feito
que, em 1903, inaugurou a era do vôo motorizado, a comemoração dos cem anos da aviação tem um sabor
agridoce nos EUA: a indústria aeroespacial americana
passa por uma crise séria, mostrando sinais de franca
decadência após décadas de hegemonia. Além disso, a
progressão tecnológica voltada para os aviões parece ter
sido desacelerada ou, em alguns casos, até mesmo interrompida, num sinal de que o pior pode ainda estar
por vir. A perda recente do ônibus espacial Columbia
parece ser apenas um aspecto do colapso de uma estrutura muito maior naquele país.
Foi esse o quadro apresentado por um painel de especialistas reunidos no mês passado para discutir a questão, durante a 169ª Reunião Anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), realizada em
Denver, no Colorado. Segundo Jonathan Coopersmith,
da Texas A&M University, "o pior de tudo talvez seja a
sensação de suspensão tecnológica, associada a pressões financeiras, que paira sobre a aviação americana".
"Os campos mais empolgantes -que atraem os mais
brilhantes- são tecnologia da informação, biotecnologia e espaço. Desafios e oportunidades existem, mas sua
execução parece medida em décadas, não anos."
Desgoverno
Para Roger Launius, a culpa pelo quadro de estagnação é, pelos menos parcialmente, da política governamental. "O governo deveria no mínimo ter
instrumentos para evitar que as companhias americanas tomassem decisões erradas", diz, ao apresentar como exemplo a decisão tardia da Boeing de trocar os
mostradores dos painéis da cabine de seus aviões por
modelos digitais mais modernos. A tecnologia foi desenvolvida pela Nasa (agência espacial americana) e
oferecida à Boeing, mas inicialmente recusada. A concorrente européia Airbus imediatamente adotou o novo sistema e ganhou uma bela dianteira no mercado.
"Houve um tempo em que, para quem tomasse um
avião nos EUA, era praticamente certo o fato de estar
embarcando num veículo americano", complementa.
"Hoje a Airbus domina quase metade do mercado."
A decadência americana não está só na aviação comercial. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, a
chamada "aviação geral" -que congrega desde vôos
com o objetivo de capturar imagens para canais de televisão até os com fins exclusivamente esportivos e de entretenimento- ficou extremamente prejudicada.
Janet Bednarek, da Universidade de Dayton, aponta
os problemas. "O governo criou as chamadas "áreas restritas", principalmente nas regiões metropolitanas e na
capital Washington, que estão acabando com a prática e
provocando a quebra de várias escolas de aviação."
Bednarek destaca a importância histórica da aviação
geral como a primeira porta de entrada para mulheres e
negros como pilotos de aviões nos EUA. Ela também
aponta que esse gênero de vôo -basicamente tudo que
não é comercial ou militar- ainda pode ser um grande
formador de novos aviadores.
Para completar, a indústria espacial americana também não vai bem. Depois do desastre do Challenger, em
1986, os EUA deixaram de ser líderes no lançamento de
carga útil (satélites) ao espaço. Hoje quem domina o
mercado é a empresa francesa Arianespace. O desastre
do Columbia também não vai ajudar em nada os americanos na tentativa de recuperar a dianteira. A Nasa está
agora numa encruzilhada para decidir o que fazer com
seu programa tripulado, com ou sem ônibus espaciais.
Apesar da crise quase generalizada, há entre os americanos um grande sentido de admiração pelos irmãos
Wright e por seu legado, o que ajuda, pelo menos para
os historiadores e entusiastas da aviação, a aliviar o peso
da crise. "Historiadores daqui a cinco séculos podem
muito bem caracterizar o vôo humano bem-sucedido, e
o que se seguiu no ar e no espaço, como a mais significativa tecnologia do século 20", diz Launius.
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