|
Texto Anterior | Índice
Ciência em Dia
A segunda morte de Dolly
Marcelo Leite
editor de Ciência
É só uma ovelha empalhada, não um
bezerro de ouro, mas serve: os diretores do Museu Real da Escócia, em Edimburgo, já anseiam pela chegada da múmia de Dolly (primeiro animal de sangue
quente clonado de outro adulto). Ela fará
companhia na seção de mamíferos à colega Morag, também pioneira, a seu modo (copiada, igualmente, mas de uma célula de embrião, ou seja, de uma ovelha
que não chegou a nascer), mas a direção
do museu acredita que Dolly atrairá multidões, diferentemente de Morag.
É provável que ninguém note a diferença, se os museólogos não providenciarem boas placas de identificação. Por
mais fotografada que tenha sido, e por
mais onipresente que sua imagem se tenha tornado, Dolly não passava de uma
ovelha como qualquer outra -em aparência, pelo menos.
Na intimidade das células de seu organismo, Dolly diferia de qualquer outra
ovelha que tenha posto os cascos sobre a
terra. Inclusive de Morag, que, apesar de
também ter sido clonada, não o foi de
uma célula adulta. Isso faz muita diferença, pois a célula adulta, como assegura
um ditado injusto para com cachorros
idosos, tem certa dificuldade para aprender truques novos, como produzir um
embrião. Só o faz sob tortura -no caso,
o choque elétrico usado para fundir a célula velha com um óvulo novo e desprovido de núcleo.
O problema está na falta de acordo sobre quais são as características fisiológicas básicas que afastam Dolly das outras
ovelhas. Como ela foi sacrificada com
metade da idade normal em que morrem suas parentes de espécie, e com uma
doença de ovelhas anciãs, voltou logo à
tona a hipótese de que ela sofresse de velhice precoce, por ter sido fabricada com
uma célula de segunda mão, e não zero-quilômetro (até artrite a ovelha famosa
teve, na pata traseira esquerda, um ano
antes de morrer).
De objetivo se sabe que Dolly desenvolveu uma doença respiratória induzida
por vírus típica de sua espécie, a adenomatose pulmonar de ovinos. O diagnóstico foi feito com auxílio de uma tomografia, que revelou vários tumores em
um dos pulmões. Desenganada, foi sacrificada na tarde de 14 de fevereiro. O último caso de ovino a morrer dessa doença no Instituto Roslin havia ocorrido um
ano e meio antes, informa Henry Nicholls na "BioMedNet Magazine"
(news.bmn.com/magazine).
O Roslin nega que o problema de Dolly
tenha sido velhice precoce. Harry Griffin,
seu diretor, acredita que a deficiência da
ovelha mais famosa do mundo, e provavelmente de todos os clones, é pura fragilidade. "A idéia [de velhice precoce" foi
muito mais uma invenção da mídia baseada em muito pouca evidência", disse
a Nicholls. Atsuo Ogura, que produz clones de camundongos às dúzias no Japão
e os vê morrer de pneumonia, concorda
com Griffin. Ele aposta que a autópsia de
Dolly vai revelar um sistema imune (de
defesa) deficiente.
Nenhum dos dois cientistas discorda,
porém, de que essa fragilidade decorre
de se tratar de clones, ainda que não sejam senis antes do tempo. Ora, para o
que realmente interessa -a clonagem
como técnica biotecnológica que os afoitos cogitam aplicar em humanos-, não
faz a menor diferença. Além de ser uma
bobagem, seria também uma temeridade. Coisa boa não é.
Ao lado dos respectivos nomes, os museólogos de Edimburgo vão precisar escrever muita coisa nas placas da dupla
empalhada, se quiserem ensinar à horda
de colegiais e turistas algo mais que o culto da personalidade ovina.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Texto Anterior: Micro/Macro: Detectando a matéria escura Índice
|