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Pesquisa de alemães e belgas pode exigir mudança no valor da constante fundamental da química conhecida como "número de Avogadro'
A DÚVIDA SOBRE AVOGRADO
Marcus Vinicius Marinho
free-lance para a Folha
A contribuição mais conhecida do italiano Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogadro (1776-1856), conde de Quaregna e Cerreto, um advogado que se tornou físico perto dos 30 anos de
idade, aconteceu depois de sua morte. Entre outras
obras em vida, Avogadro foi o primeiro a publicar, em
1811, a idéia de que os elementos químicos poderiam
existir como moléculas -uma palavra latina (utilizada
até então indiscriminadamente) que ele adotou para
sua hipótese, que explicava por que misturar um volume de gás hidrogênio com o mesmo volume de gás cloro não resultava no dobro de volume de gás. A razão era
a formação de compostos mistos dos dois elementos
-moléculas.
A conclusão final de seu trabalho, de que "volumes
iguais de todos os gases à mesma temperatura e pressão
contêm o mesmo número de moléculas", ficou conhecida como o Princípio de Avogadro. No entanto, o complicado nome do italiano é mais lembrado em razão das
decorrências póstumas de suas pesquisas. Tendo como
base o legado de Avogadro, na segunda metade do século 19 químicos europeus como o italiano Stanislao
Cannizzaro (1826-1910) e o austríaco Johann Joseph
Loschmidt (1821-1895) fizeram descobertas que culminaram com a descoberta do número de Avogadro (uma
homenagem póstuma ao físico), constante fundamental da natureza que define o que é um mol.
O mol é o grande terror da química de nível médio.
Alunos quebram a cabeça para entendê-lo; professores
de química, para explicá-lo. Ele nada mais é que uma
quantidade (assim como uma dúzia ou uma centena),
especialmente utilizada para fazer a conversão entre a
massa de uma determinada substância e o número de
átomos ou moléculas a ela correspondente.
O número de Avogadro -e, consequentemente, um
mol- é igual a cerca de 6,022 x 1023, ou seja, cerca de 600
trilhões de bilhões. Isso é, por definição, equivalente ao
número de átomos em 12 gramas de carbono-12, a forma mais abundante dos átomos do elemento.
A medida oficial, recomendada pelo Comitê de Dados
para Ciência e Tecnologia do Conselho Internacional de
Ciência (Icsu), foi feita com dois aparelhos denominados balanças de Watt (um nos Estados Unidos, outro
no Reino Unido), sistemas sensíveis de escalas baseados
em força eletromagnética. O número tem uma precisão
que chega a sete casas decimais depois da vírgula, ou seja, uma parte em 10 milhões. Mas uma descoberta de
cientistas alemães e belgas pode exigir que a comunidade científica mude o valor dessa constante fundamental, baseada em novas medidas com cristais de silício
puro. Assim como o número de Avogadro, a definição
de mol também mudaria.
Pequena diferença de bilhões
Embora a diferença
entre as medidas feitas pelos cientistas do PTB (Physicalisch-Technische Bundesanstalt, o laboratório alemão de padrões de qualidade), em Braunschweig, e do
Instituto para Medidas e Materiais de Referência da
União Européia em Geel, na Bélgica, seja equivalente a
apenas um centésimo de milésimo da medida oficial do
número de Avogadro, ela ainda é significativa: a diferença, apenas na quinta casa depois da vírgula de um
número tão grande, ainda equivale a cerca de 6 x 1018, ou
seja, 6 bilhões de bilhões.
"Nosso número tem a mesma precisão do oficial
[uma parte em 10 milhões], mas é substancialmente diferente", explica por telefone Peter Becker, 58, do PTB
alemão. "Pode ter havido um erro nessas medidas, mas
nossos dados são consistentes, e há outras circunstâncias que os favorecem", diz Becker, que realizou cerca
de 20 medidas.
Até aí, como o próprio cientista admite, erros nas medidas de sua equipe poderiam realmente responder por
essa diferença. No entanto, com a publicação dos dados
da pesquisa na edição de setembro da revista científica
internacional "Metrologia", um grupo do NPL (Laboratório Nacional de Física, do Reino Unido), que conta
com uma das duas balanças de Watt que definem o número oficial, afirma ter feito novas medidas que, surpreendentemente, batem com as do grupo de Becker.
"A anomalia nos dados pode estar no experimento
original, feito com a balança de Watt americana. Os novos dados da balança inglesa estão mais de acordo com
as novas medidas alemãs", afirma Stuart Davidson,
chefe do departamento de massa e densidade do NPL.
A discussão sobre a mudança ou a manutenção do
número de Avogadro -e do mol- ficará para o ano
que vem, quando haverá o próximo encontro do Comitê Internacional de Pesos e Medidas (CIPM). "É difícil
dizer o que sairá desse encontro. Há muitos países e interesses envolvidos. Assim, o problema não é apenas
científico, mas também cultural", diz Becker.
Com uma eventual mudança no número de Avogadro, os valores para muitas outras constantes fundamentais da natureza teriam de ser trocados. Seria o caso, por exemplo, da constante de Faraday, relacionada à
carga elétrica, e da constante de Planck, ligada à energia
de um fóton. Muitos trabalhos científicos que requereram altíssima precisão terão de ser revistos se os novos
valores das constantes forem aprovados no encontro.
Esferas e quilos
Para chegar ao novo valor do mol,
Becker e colegas construíram esferas feitas de cristal de
silício puro, polidas com precisão atômica. Com auxílio
delas, fizeram medidas da distância de átomo para átomo no cristal, por meio de uma técnica conhecida como
interferometria de raios X. O método consiste, grosso
modo, em bombardear os raios X através das esferas e
verificar, do outro lado, quanto eles se desviam de seu
caminho original.
As esferas são uma forma privilegiada para a construção dos cristais, por terem raio e volume precisos e não
terem pontas que possam ser lascadas. A estrutura das
esferas foi exaustivamente pesquisada pelos cientistas
envolvidos, e a maior irregularidade em sua superfície
tinha cerca de 500 átomos de altura. Isso é o equivalente
a aplainar a Terra até que a montanha mais alta tenha
cerca de dez metros.
"Nossa intenção não é apenas rever os valores para o
número de Avogadro, por mais que isso seja importante. Na verdade, o objetivo original, do qual ainda não
desistimos, era encontrar uma nova definição científica
para o quilograma", diz Becker. O problema da definição da principal unidade de massa no mundo é um velho conhecido da ciência. Enquanto outras unidades do
Sistema Internacional (SI) como o segundo (tempo), o
metro (distância) e o ampère (corrente elétrica) podem
ser definidas com grande precisão em termos de quantidades atômicas absolutas, o quilograma é definido por
um padrão de metal: um cilindro de platina e irídio de
quatro centímetros de altura, guardado na sede do Birô
Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), em Sèvres,
nos arredores de Paris.
Para dar uma idéia da diferença na elegância das definições: um segundo é determinado como o tempo de
9.192.631.770 ciclos de um certo tipo de radiação emitido por átomos de césio-133; o metro, pela distância percorrida pela luz numa certa fração de segundo. Qualquer pessoa que queira saber quanto um quilograma
realmente pesa, no entanto, tem de viajar à França para
medir o quilograma original. Se a definição do mol e do
número de Avogadro chegar a uma precisão suficiente,
aí um quilograma poderá ser definido em termos de
átomos. A precisão satisfatória, dizem os cientistas, é de
aproximadamente alguns décimos de partes por bilhão.
Projeto Avogadro
Para alcançar o objetivo, o grupo
de Becker -que faz parte do chamado Projeto Avogadro, um consórcio mundial para ligar a definição do
quilograma a quantidades atômicas absolutas- acredita que o próximo passo para aumentar a precisão das
medidas seja aperfeiçoar as esferas.
O silício é encontrado na natureza em três formas estáveis, o silício-28, o silício-29 e o silício-30. As esferas
de Becker atualmente contêm um pouco dos três, e o
cálculo das percentagens respectivas aumenta um pouco a imprecisão das medidas. Para torná-las mais precisas, uma das saídas seria fazer um cristal de um só tipo,
no caso o silício-28. O material já está sendo produzido
na Rússia e precisa passar por numerosas etapas de fabricação no país e na Alemanha até chegar à forma final
das novas esferas. Segundo Becker, daqui a cerca de três
ou quatro anos novas medidas poderão ser realizadas
com os cristais de silício.
"Além de melhorar ainda mais o número de Avogadro e ter certeza de seu novo valor, talvez nós possamos
também chegar à nova definição do quilograma, o que
seria matar dois coelhos com uma cajadada só", afirma
Peter Becker.
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