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Micro/Macro
A tensão criativa do cosmos
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Existe uma tensão criativa no cosmos.
Nós a sentimos todas as vezes em que
olhamos para o mundo à nossa volta e
em nós mesmos. Ela se manifesta nos
menores detalhes, em uma gota de orvalho equilibrando-se na ponta de uma folha nas primeiras horas da madrugada,
ou na simetria das asas de uma borboleta. E também em grandes escalas, em um
relâmpago rasgando de luz a escuridão
da noite, ou nas estrelas, que queimam as
suas próprias entranhas para gerar a
energia que resiste à sua implosão gravitacional. A história da humanidade pode
ser contada como uma série de representações da dança entre o caos e a ordem
que dá forma ao mundo.
Inúmeras histórias, pinturas, danças e
rituais foram (e são) criados procurando
dar significado à nossa existência. Nós
olhamos para o cosmo com um misto de
adoração e terror, de devoção e insegurança. Nossa curiosidade não tem limites.
Como algo pode surgir do nada? Qual a
origem de todas as coisas? Como a ordem pode surgir por si só, sem algo ou alguém para dirigi-la? Será que a beleza
que percebemos no mundo é um acidente ou ela tem um significado mais profundo? Por que temos tanta atração pelas
coisas belas, como drogados pelas drogas? O que nos faz cultivar jardins, compor poemas e sinfonias, criar teoremas
matemáticos e equações? Por que não
nos contentamos simplesmente em comer, dormir e procriar?
Essas questões servem de ponte entre
as várias formas de conhecimento, incluindo a pesquisa científica de ponta, as
meditações filosóficas, as preces religiosas e as artes. De certo modo, essa busca
por respostas nos define. Ao perguntar,
ao querer saber sempre mais, nós damos
significado à nossa existência. Mesmo
que as respostas mudem de cultura para
cultura, várias questões são essencialmente idênticas. E muitas permanecem
sem resposta.
A ciência moderna desenvolveu uma
narrativa descrevendo o surgimento das
estruturas materiais no Universo. Embora muitos detalhes e questões fundamentais permaneçam em aberto, podemos
hoje afirmar com certeza que a história
do cosmo traça a "complexificação"
crescente de seus habitantes -viventes
ou não- baseada no desenvolvimento
hierárquico de forma e função, do simples ao mais complexo.
Em seus primórdios, o Universo era
extremamente quente e denso, e a matéria era composta de seus constituintes
mais básicos, as partículas elementares.
A expansão e o consequente resfriamento do Universo, juntamente com forças
atrativas entre as várias partículas, estimularam a formação de estruturas compostas de mais de um componente, chamadas de estruturas ligadas: prótons e
nêutrons surgiram a partir da junção de
quarks; núcleos atômicos, da junção de
prótons e nêutrons; átomos leves como o
hidrogênio, da junção de núcleos atômicos e elétrons; galáxias, a partir do colapso de enormes nuvens de hidrogênio, estrelas de nuvens de hidrogênio e hélio
dentro das jovens galáxias -até que,
eventualmente, seres vivos surgiram em
ao menos um dos bilhões de sistemas solares espalhados pelo cosmo.
A descrição científica da emergência de
estruturas materiais complexas vem tendo enorme sucesso. A cosmologia, por
exemplo, é hoje uma ciência empírica,
com uma enorme quantidade de dados,
o que há duas décadas seria impensável.
Esse sucesso, como deve ser em ciência, acaba por gerar mais perguntas. Entre as mais fascinantes estão as questões
das origens: a origem do cosmo, a origem da vida e a origem da mente. As respostas a essas perguntas estão necessariamente relacionadas com a existência
de estruturas emergentes: como estruturas podem se auto-organizar a ponto de
gerar comportamentos extremamente
complexos?
Seja o nosso Universo surgindo de
uma sopa quântica de universos, seja um
ser vivo composto de milhões de macromoléculas orgânicas, ou um ser pensante, capaz de refletir sobre a sua origem ou
sobre questões morais, a emergência de
estruturas complexas representa um dos
grandes desafios intelectuais de nossa
época, prova da incrível criatividade da
natureza. E, por que não dizer, da nossa
também.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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