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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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Estudo de estranhos fenômenos nas altas camadas da atmosfera, batizados com nomes de entidades míticas escandinavas, pode oferecer o elo faltante para explicar dinâmica da distribuição e do fluxo de eletricidade em torno do planeta


Nas nuvens com fadas e elfos


Nuvens de tempestade e um raio dominam o cenário sobre o lago Michigan, nos Estados Unidos


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

No inverno, a temperatura média é de -30C, chega a -40C ou -50C por algumas semanas, em dezembro e janeiro. Os dias são bem curtos nesse período, a duração mínima é de quatro horas. Agora já estamos na primavera, indo para o verão. Nesta época, cada dia ganha aproximadamente sete minutos. Em maio as noites já estão bem curtas, e em junho e julho o Sol se põe por quatro horas, mas não chega a ficar escuro. Não há noite." A carioca Fernanda São Sabbas já experimenta a vida no Alasca há quatro anos. Mesmo nos dias mais frios e nas nevascas mais inclementes, sua mente está focalizada em outro ambiente, ainda mais hostil -a alta atmosfera. Nada de ruidosos trovões e raios luminosos, eventos espalhafatosos que ocorrem nas camadas mais baixas do ar. Em vez disso, a pesquisadora brasileira se concentra em fantasmagóricas aparições que ocorrem acima das nuvens de tempestade, a uns 90 km de altitude. Pois em meio a esse ar rarefeito vivem as fadas e os elfos, constataram, perplexos, os cientistas.
A nomenclatura vem da mitologia escandinava e não se rendeu a uma tradução para o português. Mesmo no Brasil, as aparições são referidas pela terminologia inglesa: "sprites" (fadas), "blue jets" (jatos azuis) e "elves" (elfos). E não têm nada de sobrenatural. São ocorrências de natureza elétrica que, grosso modo, podem ser vistas como uma consequência dos relâmpagos, só que na alta atmosfera e com menor intensidade.
O primeiro sprite foi detectado apenas em 1989. No Brasil, o trabalho pioneiro produzido sobre o assunto foi justo a tese de mestrado de São Sabbas, concluída em 1999 no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Depois disso ela se mudou para o Alasca para realizar seu doutorado. "O grupo de sprites da Universidade do Alasca em Fairbanks [UAF" é um dos líderes mundiais dessa pesquisa. Dave Sentman, meu orientador de doutorado, foi o pesquisador que deu nome aos sprites. Eugene Wescott, do mesmo grupo, nomeou os blue jets." "Mas o grupo não faz observações desses fenômenos aqui no Alasca." Ela explica o porquê: "Sprites, blue jets, elves, sprite-halos etc. são fenômenos de baixa luminosidade. Eles são gerados pela interação do campo elétrico e eletromagnético dos relâmpagos com a média e a alta atmosferas. Os relâmpagos são gerados pelas nuvens de tempestade. Aqui no Alasca só há tempestades no verão, quando não há noite. Como a luz do Sol é muito mais intensa do que a luminosidade desses fenômenos, eles só podem ser observados à noite". Então por que diabos há tantos especialistas no assunto por lá? A resposta está nas auroras boreais, essas sim bastante comuns no céu do círculo polar Ártico. "O equipamento utilizado para observação de sprites -câmeras de vídeo extremamente sensíveis à luz- é o mesmo utilizado para observação da aurora", conta São Sabbas. "O grupo faz observações de sprites a partir do solo e de aviões. Em julho e agosto de 1999, tive a chance de participar de uma dessas campanhas pela primeira vez. Eu era recém-chegada a Fairbanks e foi uma experiência inesquecível. A campanha foi um esforço conjunto de grupos de pesquisa de várias universidades. Havia três sítios de observação: Yucca Ridge, perto de Fort Collins, no Colorado, Bear Mountain, perto de Custer, em Dakota do Sul, e no Observatório de Infravermelho de Wyoming. A UAF estava responsável pelos dois últimos, e eu tive a oportunidade de participar das atividades em ambos os sítios. Diversas câmeras e fotômetros foram utilizados para observação. Além disso, em duas noites balões estratosféricos contendo fotômetros e sensores eletromagnéticos foram lançados na direção das tempestades para coletar dados." "Os EUA estão liderando as pesquisas agora", relata Torsten Neubert, físico do Instituto de Pesquisa Espacial Dinamarquês. "Estamos tentando colocar a Europa no jogo agora, e parece que estamos ganhando momento. O financiamento nos EUA está caindo, ouvi dizer, então digamos que poderemos estar em pé de igualdade na Europa em quatro anos, quando tivermos nossa própria instrumentação no espaço."


São esses fenômenos só bonitos, como os arco-íris, ou eles impactam a atmosfera de algum modo significativo? É preciso entrar nos detalhes


Em terra
A maior parte dos estudos de sprites acontece em campanhas terrestres. "Em novembro do ano passado tivemos a primeira campanha de sprites no Brasil. Observamos a partir do solo e de avião, utilizando o avião do Inpe. Foi ótimo! Uma colaboração do Inpe, da Universidade Estadual de Utah e da Universidade de Washington", conta São Sabbas. Neubert também já participou desses esforços. "Você vai para o alto de uma montanha e olha com câmeras sobre as tempestades de raios no horizonte. Você se coordena com outros grupos que fazem outras medições. Fica em contato pela internet e obtém imagens de nuvens de satélite e informações de atividade de relâmpagos de estações de terra, de modo a saber para onde apontar as câmeras." A observação do espaço pode oferecer ainda mais lampejos sobre esses fenômenos. Desde 1989 os ônibus espaciais fazem observações relacionadas aos fenômenos elétricos da alta atmosfera. Na última missão do Columbia, em janeiro deste ano, o astronauta israelense Ilan Ramon testou uma câmera que poderia ser usada para a observação de sprites, antes de morrer com seis companheiros de vôo no desastre de 1º de fevereiro. Neubert conta que a Dinamarca está tentando embarcar um equipamento voltado para esses estudos na Estação Espacial Internacional. Os franceses estão cogitando o desenvolvimento de uma rede de microssatélites. E o Brasil também está desenvolvendo um satélite especificamente para estudos desse tipo. São Sabbas volta ao Inpe no fim do mês, após concluir seu doutorado no Alasca, para trabalhar no Equars (Satélite de Pesquisa Atmosférica Equatorial, na sigla em inglês). "Entre outros instrumentos, estamos propondo uma câmera para sprites na qual eu estarei trabalhando", ela conta. "É um bom projeto, está desenvolvendo a tecnologia espacial brasileira, e na área de sprites está realizando pesquisa de ponta em pé de igualdade com outros países." "Estamos em fase final de configuração do satélite", diz Hisao Takahashi, físico que gerencia o projeto no Inpe. "O lançamento, se tudo correr bem, deve ser em 2006. Trabalhamos com a hipótese de lançá-lo no VLS [Veículo Lançador de Satélites], numa órbita equatorial com inclinação de 20 graus, a uma altitude de 700 km."

Longo circuito
Com esses esforços, os cientistas pretendem elucidar os detalhes a respeito desses fenômenos que podem ser a chave para fechar o chamado Circuito Elétrico Global. "Existe um campo elétrico na atmosfera constantemente, o chamado campo elétrico de tempo bom. Ele é mantido pelas cargas elétricas das nuvens de tempestade. A corrente elétrica se propaga para cima, se conecta com a ionosfera, se propaga pela ionosfera em direção a regiões de "tempo bom" e de lá vem ao solo. Os sprites podem ser o elo que faltava entre o topo das nuvens e a ionosfera", diz São Sabbas.
O ar é um meio dielétrico, ou seja, um péssimo condutor de corrente elétrica. Apesar disso, nas nuvens de tempestade, o campo elétrico gerado é tão intenso que a resistência oferecida pelo ar é vencida, gerando os raios luminosos vistos com frequência no horizonte. "Relâmpagos são correntes elétricas que ocorrem quando o campo elétrico da nuvem atinge o valor crítico", explica São Sabbas. "Quando relâmpagos ocorrem, eles extinguem uma certa quantidade de carga elétrica na nuvem. O desaparecimento dessa carga gera um campo elétrico temporário. Mesmo quando é muito intenso, ele geralmente não é o suficiente para iniciar um novo relâmpago, mas pode causar a ruptura dielétrica da atmosfera em camadas mais altas [onde a resistência é menor". Sprites surgem entre 70 e 90 km de altitude."
Os sprites se manifestam como figuras horizontais e dispersas de cor avermelhada, que surgem por uma fração de segundo na alta atmosfera. Os elves são halos que surgem ainda mais alto e se dispersam a partir de um ponto central. Os blue jets se originam em regiões mais baixas e, como o nome sugere, se parecem com jatos azulados. Os mecanismos básicos para a formação desses diferentes fenômenos estão razoavelmente esclarecidos, mas ainda faltam muitos detalhes.
A pergunta que atualmente mais aflige os cientistas diz respeito mais às consequências do que à existência dessas aparições. "Acredito que ainda haja aspectos básicos a serem descobertos, mas temos um entendimento geral do fenômeno. Agora fazemos a pergunta: são os sprites só bonitos como os arco-íris ou impactam a atmosfera de algum modo significativo? Aqui precisamos entrar nos detalhes", diz Neubert. "Esse é o maior desafio que enfrentamos atualmente: descobrir quais os efeitos dos sprites na atmosfera", completa São Sabbas.
"Eu costumo pensar que eles são apenas a ponta do iceberg", diz a brasileira. "A energia da parte "visível" que chamamos de sprite, estimada em 50 mil joules, representa uma pequena porcentagem da energia total depositada na atmosfera, estimada em 1 milhão a 10 milhões de joules. O que essa energia "faz" ainda não sabemos. Há um número bem pequeno de pesquisadores no mundo estudando sprites atualmente, algo em torno de 50 ou 70 pessoas. Precisamos de mais gente."


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