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Micro/Macro
Vida, difração e DNA
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
A sabedoria do homem livre consiste
em meditar sobre a vida e não sobre
a morte." Assim escreveu o filósofo Baruch Spinoza em seu famoso livro "Ética", de meados do século 17. Não por
acaso, Erwin Schrödinger, um dos grandes físicos do século 20, usou essa mesma frase em seu livro "O que É Vida?",
uma das obras mais influentes no desenvolvimento da biologia molecular e, em
particular, da genética após a Segunda
Guerra. O livro é uma compilação de
uma série de palestras que Schrödinger
proferiu na Universidade de Dublin, Irlanda, em 1943.
Admitindo não ser um especialista no
assunto, Schrödinger propõe que o fato
de a física e a química não serem capazes
de explicar o que ocorre em organismos
vivos não deve ser visto como uma barreira intransponível, mas como um desafio: o mistério da vida é, essencialmente, província da ciência. Aceita essa razoável premissa, a questão é como abordá-lo cientificamente.
Schrödinger sugere que a "fibra cromossômica", onde reside a informação
genética característica de cada indivíduo,
é um cristal aperiódico, em distinção daqueles comumente tratados pelos físicos,
que são na maioria periódicos. É claro
que os cristais periódicos são bem mais
simples que os aperiódicos. Schrödinger
mesmo faz a comparação: é como olhar
para um papel de parede ordinário, com
o mesmo padrão se repetindo regularmente, e uma tapeçaria de Rafael, que,
sem apresentar uma repetição monótona, oferece uma coordenação de padrões
elaborados cujo efeito final é gerar um
significado único.
A estrutura periódica dos cristais é revelada por meio de técnicas de difração
de raios X. Esses são os mesmos raios X
usados por dentistas e médicos, uma radiação eletromagnética de frequência
bem mais alta do que a luz visível. A difração é um efeito que resulta da superposição de ondas sucessivas -ora construtiva (duas cristas se somando), ora
destrutiva (crista e depressão se cancelando)- quando elas passam por um ou
mais obstáculos. Quando raios X são
bombardeados sobre um cristal, eles encontram obstáculos -os átomos que
compõem o cristal. Se uma placa fotográfica é exposta aos raios X após passarem por um cristal, o resultado é a reprodução detalhada de sua estrutura periódica.
O problema, claro, fica bem complicado quando o cristal não tem uma estrutura periódica, já que o espaçamento entre os átomos não é mais uniforme. Mais
ainda, se o cristal tiver milhares ou mesmo milhões de átomos, a tarefa torna-se
quase impossível, um quebra-cabeças de
proporções gigantescas. Esse era, justamente, o desafio daqueles que tentavam
desvendar a estrutura de proteínas usando difração de raios X.
Schrödinger sugere também que a
transmissão de características de uma
geração a outra ocorre no nível molecular, através de um processo genético de
cópia de informação. Em 1944, um ano
após as palestras de Schrödinger, o biólogo americano Oswald Avery propôs
que os genes são compostos por uma
macromolécula conhecida como DNA
(ácido desoxirribonucléico). O código da
vida, as características de cada animal e
pessoa, está registrado na estrutura dessa
molécula. O desafio era decifrá-lo.
Entram em cena Francis Crick, um físico especialista em difração de raios X, e
James Watson, um biólogo determinado
a decifrar a estrutura do DNA. Ambos
trabalhavam em Cambridge, Reino Unido, cientes das idéias de Schrödinger de
que os genes têm sua estrutura definida
ao nível molecular. Em Londres, no
King's College, Rosalind Franklin e Maurice Wilkins obtiveram as primeiras imagens, ainda não muito claras, de cristais
de DNA usando difração de raios X.
Crick e Watson se lançam de corpo e
alma ao desafio e, em abril de 1953, há 50
anos portanto, mostram que o DNA tem
a estrutura de uma hélice dupla, com
quatro bases nitrogenadas (A, T, C e G)
se alternando duas a duas.
Schrödinger estava correto: o código
genético reside mesmo no nível molecular, definido e propagado de geração em
geração. Como ele disse, mesmo que os
cientistas sejam na sua maioria especialistas em uma determinada área do conhecimento, almejam sempre expandi-lo. Sua obra é prova de que a coragem de
pular as fronteiras entre as disciplinas
muitas vezes cria pontes inesperadas.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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