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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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Ciência em Dia

Malária da boca para fora

Marcelo Leite
editor de Ciência

O virtual pesa cada vez mais que o real. No caso da malária, doença que só mata gente pobre e escura, governos e cidadãos de países ricos devem achar que podem dormir com a consciência leve, pois estariam fazendo muito para livrar o mundo da sua segunda doença mais letal (depois da Aids). A malária mata mais de 100 milhões de pessoas por ano, 90% delas na África, 70% de mulheres e seus filhos. São 3.000 crianças africanas mortas por dia.
A consciência dos doadores politicamente corretos pode encontrar-se tranquila porque, afinal, os países ricos apoiaram a iniciativa Roll Back Malária (RBM, algo como "faça a malária recuar"), da Organização Mundial da Saúde. A meta do programa RBM é cortar pela metade as mortes até 2010, e de novo pela metade daí até 2015.
Foi também com pompa e circunstância, além das melhores intenções, que a nata da intelectualidade tecnocientífica anunciou em outubro passado a finalização do sequenciamento dos genomas do principal parasita causador das mortes pela doença, Plasmodium falciparum, e do mosquito transmissor mais comum na África, Anopheles gambiae.
Leitura obrigatória na elite cosmopolita da pesquisa, as revistas científicas mais famosas do mundo, "Nature" e "Science", publicaram na ocasião 34 artigos de 168 autores. Não faltaram entrevistas coletivas. Todos deram um lustro adicional aos próprios currículos. Também sabiam todos, com conhecimento de causa, que isso pouco ou nada contribuirá para acuar a malária, nos próximos anos.
Não é preciso biologia molecular para controlar plasmódios e anofelinos, mas remédios eficazes e uma tecnologia de baixíssima intensidade: mosquiteiros tratados com inseticida. Coisa simples de fazer, mas que não rende capa de revista.
Os dois genomas até que saíram barato, US$ 15 milhões, perto do custo projetado para que o RBM alcance a meta de cortar pela metade as mortes até 2010: de US$ 1,5 bilhão a US$ 2,5 bilhões anuais. Montado na popularidade midiática do DNA, até que é fácil imprimir na opinião pública internacional a convicção de que algo está sendo feito, e algo de especial, ultratecnológico, com a precisão e a eficácia patibulares associadas à genética.
A realidade é bem outra, e também se mede em dólares. Segundo levantamento demolidor de Vasant Narasimhan e Amir Attaran, da Universidade Harvard, o dispêndio anual real dos 23 países mais ricos não passa de US$ 100 milhões anuais (ou 0,0004% do PIB somado dessas nações). Pior, só 37% vão para a África, onde ocorrem 90% das mortes.
O estudo saiu numa publicação científica de acesso aberto, "Malaria Journal" (www.malariajournal.com/content/ pdf/1475-2875-2-8.pdf). O ataque mais ferino da dupla foi assestado contra o benevolente Banco Mundial, que em abril de 2000 assumiu o compromisso público de investir US$ 500 milhões para combater a malária na África, mas que nos últimos três anos teria desembolsado US$ 10 milhões.
Não é de estranhar, assim, que só 15% das crianças africanas estejam indo para a cama com mosquiteiros e menos ainda, 3%, sob filó impregnado com inseticida. Estas, sim, podem dormir com as consciências tranquilas, assim como os outros 97% desamparados por um público afluente que financia fantasias necrófilas como "Titanic", mas não comparece com metade de seu valor para salvar vidas de verdade com pedaços de pano.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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