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Ciência em Dia
Malária da boca para fora
Marcelo Leite
editor de Ciência
O virtual pesa cada vez mais que o
real. No caso da malária, doença
que só mata gente pobre e escura, governos e cidadãos de países ricos devem
achar que podem dormir com a consciência leve, pois estariam fazendo muito
para livrar o mundo da sua segunda
doença mais letal (depois da Aids). A
malária mata mais de 100 milhões de
pessoas por ano, 90% delas na África,
70% de mulheres e seus filhos. São 3.000
crianças africanas mortas por dia.
A consciência dos doadores politicamente corretos pode encontrar-se tranquila porque, afinal, os países ricos
apoiaram a iniciativa Roll Back Malária
(RBM, algo como "faça a malária recuar"), da Organização Mundial da Saúde. A meta do programa RBM é cortar
pela metade as mortes até 2010, e de novo
pela metade daí até 2015.
Foi também com pompa e circunstância, além das melhores intenções, que a
nata da intelectualidade tecnocientífica
anunciou em outubro passado a finalização do sequenciamento dos genomas do
principal parasita causador das mortes
pela doença, Plasmodium falciparum, e
do mosquito transmissor mais comum
na África, Anopheles gambiae.
Leitura obrigatória na elite cosmopolita da pesquisa, as revistas científicas mais
famosas do mundo, "Nature" e "Science", publicaram na ocasião 34 artigos de
168 autores. Não faltaram entrevistas coletivas. Todos deram um lustro adicional
aos próprios currículos. Também sabiam todos, com conhecimento de causa, que isso pouco ou nada contribuirá
para acuar a malária, nos próximos anos.
Não é preciso biologia molecular para
controlar plasmódios e anofelinos, mas
remédios eficazes e uma tecnologia de
baixíssima intensidade: mosquiteiros
tratados com inseticida. Coisa simples de
fazer, mas que não rende capa de revista.
Os dois genomas até que saíram barato, US$ 15 milhões, perto do custo projetado para que o RBM alcance a meta de
cortar pela metade as mortes até 2010: de
US$ 1,5 bilhão a US$ 2,5 bilhões anuais.
Montado na popularidade midiática do
DNA, até que é fácil imprimir na opinião
pública internacional a convicção de que
algo está sendo feito, e algo de especial,
ultratecnológico, com a precisão e a eficácia patibulares associadas à genética.
A realidade é bem outra, e também se
mede em dólares. Segundo levantamento demolidor de Vasant Narasimhan e
Amir Attaran, da Universidade Harvard,
o dispêndio anual real dos 23 países mais
ricos não passa de US$ 100 milhões
anuais (ou 0,0004% do PIB somado dessas nações). Pior, só 37% vão para a África, onde ocorrem 90% das mortes.
O estudo saiu numa publicação científica de acesso aberto, "Malaria Journal"
(www.malariajournal.com/content/
pdf/1475-2875-2-8.pdf). O ataque mais
ferino da dupla foi assestado contra o benevolente Banco Mundial, que em abril
de 2000 assumiu o compromisso público
de investir US$ 500 milhões para combater a malária na África, mas que nos últimos três anos teria desembolsado US$ 10
milhões.
Não é de estranhar, assim, que só 15%
das crianças africanas estejam indo para
a cama com mosquiteiros e menos ainda, 3%, sob filó impregnado com inseticida. Estas, sim, podem dormir com as
consciências tranquilas, assim como os
outros 97% desamparados por um público afluente que financia fantasias necrófilas como "Titanic", mas não comparece com metade de seu valor para salvar
vidas de verdade com pedaços de pano.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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