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NEUROLOGISTA E PSICANALISTA BRASILEIROS ARGUMENTAM CONTRA A PROPOSTA DE JUNTAR O ARCABOUÇO TEÓRICO CRIADO POR FREUD AOS ESFORÇOS EXPERIMENTAIS DAS NEUROCIÊNCIAS
COMPLEXO DE CIENTISTA
Daniele Riva
Jorge Forbes
especial para a Folha
No caderno Mais! de 20 de junho de 2004 deparamo-nos com uma entrevista de Mark Solms,
"precursor" da chamada "neuropsicanálise".
Solms propõe uma junção de paradigmas incompatíveis: a psicanálise e a neurociência. Apresenta-se
como cientista, compromisso que envolve um investimento intelectual proporcional à complexidade da tarefa.
A leitura dos argumentos de Solms provoca uma vivência
desagradável de inadequação.
Para o neurologista, o desagrado deriva da apresentação
do instrumental tecnológico das neurociências à margem
do seu campo específico de relevância e como artefato de
uma verdadeira mistificação neurocientífica. Além disso,
no recente livro "O que é a Neuropsicanálise", Solms analisa peculiarmente um dos problemas teóricos mais complexos em neurologia: a controvérsia doutrinária sobre a
localização das funções psíquicas. Simplifica esquematicamente o trabalho dos precursores, finalizando com sua
admiração pelo neuropsicólogo Alexander Luria, descrevendo-o como um "criptopsicanalista" obrigado pelos
"ventos da opinião política" a fazer uma retratação ideológica, escondendo seus pendores pela psicanálise. Entretanto, o caráter seminal da obra de Lev Vigotsky aparece
inúmeras vezes em Luria, incluindo a frase filial "este meu
trabalho é uma continuação do caminho traçado por Vigotsky". Solms erra a paternidade.
Para o leitor psicanalista, o desconforto deriva da simplificação e banalização dentro de um projeto francamente reducionista e equivocado, errando duas vezes: no julgamento de que Freud vai mal e na pretensão de se apresentar como seu salvador. Quem, Solms?
Hostilidade
Vejamos os argumentos. Solms começa
declarando sua admiração por Freud para, logo em seguida, reduzir a pó a sua metodologia ao afirmá-la "subjetiva,
desprovida de controle científico e objetividade; no método freudiano é impossível falsear hipóteses, há uma especulação sem verificação". Curiosamente, os argumentos
utilizados por Solms são os mesmos de Karl Popper e Mario Bunge, filósofos da ciência abertamente hostis à psicanálise.
Mais adiante, afirma que os méritos da psicanálise estariam no seu caráter criativo e inovador, o que lhe atribuiria um papel heurístico. É fato que hipóteses não costumam representar o resultado de atividades racionais. A
intuição, o devaneio e mesmo os estados oníricos permitem o aparecimento de hipóteses criativas. O raciocínio
científico pode ser decomposto em dois momentos alternantes: um imaginativo e criador e outro lógico-experimental, rigoroso e crítico.
Solms afirma claramente a impotência da psicanálise
nesse segundo momento, condenada pela suposta falha
metodológica a permanecer num círculo fechado de "especulação sem verificação" (sic). Como então teria sido
possível criar um corpo doutrinário, no qual todos reconhecem articulação e coerência, somente por meio da especulação desenfreada? A questão não é abordada por
Solms. Ele omite que Freud, em inúmeras ocasiões, afirmou a clínica psicanalítica como o local privilegiado da
pesquisa, considerando os testes experimentais inadequados e irrelevantes. Freud, além de criar um campo de conhecimento, tinha a convicção de ter criado um método
adequado para sua exploração.
Visão simplista
Em nosso entender, quando Freud
abandona o "Projeto para uma Psicologia Científica"
(obra abertamente rejeitada pelo próprio autor e só publicada postumamente) e publica a sua opus magnum, "A
Interpretação dos Sonhos" (1900), realiza um corte epistemológico, cria um novo paradigma e, com ele, a psicanálise. Conhecemos e respeitamos as obras que apontam continuidades entre o "Projeto" e obras posteriores, mas os
elementos de ruptura, para nós, são preponderantes. Com
"A Interpretação dos Sonhos", Freud rompe os vínculos
com sua matriz neurológica e aventura-se no desconhecido, armado somente de um método: exatamente o método que Solms despreza. Esta visão simplista nos levaria a
pensar que, se Freud tivesse à sua disposição PET-Scan
(na sigla em inglês, tomografia por emissão de pósitrons,
uma técnica de imageamento do cérebro) e uma ressonância nuclear magnética, teria continuado na linha do
"Projeto para uma Psicologia Científica" e criado a neuropsicanálise um século antes de Solms...
Ao contrário, observemos a postura de Freud na "Psicopatologia da Vida Cotidiana", quando descreve os lapsos.
Havia se dedicado com brilho ao estudo dos distúrbios
neurológicos da linguagem, tendo escrito, em 1891, uma
monografia sobre a afasia (perda por lesão cerebral do poder de expressão ou da capacidade de compreensão), suas
formas clínicas e mecanismos. Em nenhum momento
Freud mistura conceitos ou mecanismos afasiológicos
com os conceitos posteriores de sua psicologia dinâmica.
Ele sabia que o nível da função e suas desorganizações (nível neuropsicológico infrapessoal, desprovido de conteúdo semântico) não se articulava com a psicologia motivacional e dinâmica que estava criando.
Solms e seu equipamento poderiam ter servido de ajuda
ao Freud estudioso da afasia, mas é quase cômico imaginar instrumentos tecnológicos para investigar lapsos cuja
dinâmica foi totalmente elaborada ao nível do sentido. Repetidamente, Solms comete um erro grosseiro ao afirmar
que a psicanálise criou o conceito de atividade mental inconsciente. A originalidade de Freud se encontra no uso
dinâmico da noção de inconsciente, que já era bastante
conhecida em filosofia e psicologia. A abundante literatura atual sobre o inconsciente cognitivo nada tem de comum com o inconsciente psicanalítico. Aliás, a ciência
cognitiva tem dificuldades teóricas para ajustar seus modelos à noção de consciência, mas está perfeitamente à
vontade com a idéia de atividade mental inconsciente.
A afirmação de que id, ego e superego possam ser localizados no cérebro é tanto engraçada quanto absurda. Para
um materialista conseqüente, toda atividade mental se localiza, em última análise, no cérebro, mas é evidente que o
modelo freudiano faz referência ao aparato mental e não
ao cérebro, o que é uma das decorrências do corte epistemológico já citado. Na última década do século 19, Freud
abandonou o viés localizacionista da neurologia clínica:
tentar "localizar" os conceitos metapsicológicos parece-nos uma traição à sua herança intelectual.
No caso da chamada neuropsicanálise, estamos diante
de um conjunto não estruturado de aproximações e analogias superficiais e abusivas que nem sequer mereceriam a
nossa consideração, não fosse pela calorosa acolhida de
uma comunidade psicanalítica paulista.
Notamos essas peripécias pseudocientíficas como parte
das reações atuais de uma espécie humana angustiada por
ter perdido as referências identificadoras em que se apoiava até recentemente. Vivemos uma mudança de era. A globalização encerrou um longo período do laço social orientado verticalmente, "pai-orientado". Estamos ainda esboçando novos conceitos e explorando novas práticas correspondentes a este tempo. Enquanto isso, vemos grassar
três tipos básicos de defesa a essa angústia desbussolante: o
reacionarismo, o misticismo, o cientificismo.
Projetos como o que aqui criticamos misturam os três
aspectos. É reacionário no que retoma o ideário biologizante do positivismo. É místico por enxergar o que não está. É cientificista por querer fazer com que as coisas ditas
pareçam verdadeiras.
A psicanálise não necessita desse tipo de ajuda dos enjeitados do novo tempo. Com Lacan, há mais de vinte anos,
psicanalistas se ocupam em mostrar a psicanálise para esta
nova forma de laço social, que exige estruturações além do
Édipo e do binarismo cartesiano. À ética anterior, marcada
pelo saber provado e garantido, anuncia-se uma ética sustentada no desejo, ética das conseqüências, da aposta, do
risco e da invenção.
Onde estão o espírito crítico, as tradições intelectuais e
principalmente a auto-estima? Estarão em níveis tão baixos a ponto de aceitar sem reservas um movimento cuja
única "vantagem" seria uma ilusão de legitimidade científica? Afinal das contas: por que os psicanalistas querem
tanto ser cientistas? Que não se iludam! A neuropsicanálise
é um cavalo de Tróia que porta um projeto reducionista no
ventre. Se ocorrer uma aproximação em alta escala, só restarão cacos analíticos no bucho de uma neurociência ideologizada.
Neurologistas e psicanalistas melhor fazem refinando
suas diferenças e se surpreendendo mutuamente.
Daniele Riva, 62, é médico neurologista do Hospital Sírio-Libanês de São
Paulo. Jorge Forbes, 53, médico psiquiatra e psicanalista, é presidente do
Conselho da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção SP; www.jorgeforbes.com.br).
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