São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002 |
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+ ciência Novo modelo pode elucidar ocupação do maior complexo pré-histórico da América De volta a Lagoa Santa
Reinaldo José Lopes enviado especial a Matozinhos (MG)
Essa preguiça aqui caiu "de borco", com o rabo virado para cima." A frase, quase inaudível, vem do
fundo de um buraco de 4,5 m. Oficialmente, esse
é o "locus 3" de uma caverna na região de Lagoa
Santa (a cerca de 50 km de Belo Horizonte), que abriga
o mais importante conjunto de sítios arqueológicos da
América. Depois de mais de um século e meio de exploração científica, Lagoa Santa recebeu, durante todo o
mês passado, um grupo de pesquisadores cuja meta final é reescrever a pré-história do continente.
Em tempo: "de borco", para quem não é do interior
de São Paulo e de Minas Gerais, quer dizer de barriga
para baixo. E a preguiça em questão não é um bicho
qualquer, desses que se encontram nas florestas brasileiras de hoje. Trata-se de um megatério, grande demais
para subir mesmo nas maiores árvores: uma preguiça
terrícola de 2,5 m que rondava as savanas do Brasil Central há uns 10 mil anos.
A voz que especula sobre o destino final da criatura é
do antropólogo Walter Neves, que sorri depois de voltar do buraco com a ajuda de uma escada: "Lindo, não
é? Eu nunca tinha escavado um bicho extinto".
Isso não é surpresa alguma, já que a especialidade de
Neves -pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP- são os primeiros habitantes
humanos do continente americano, e não fósseis de
animais. Foi estudando um crânio da região, encontrado num dos abrigos de Lapa Vermelha e hoje conhecido como "Luzia", que o antropólogo começou a popularizar seu modelo de povoamento da América, que
postula a chegada de dois povos fisicamente bem distintos ao continente, o primeiro há 14 mil anos.
Contudo, a palavra de ordem entre os mais de 30 pesquisadores que se reuniram em Matozinhos, município
de 30 mil habitantes da região de Lagoa Santa, é unir as
forças e as técnicas até então díspares da paleontologia e
da arqueologia. Com o apoio da Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a meta do
grupo é montar o quebra-cabeças deixado pela passagem dos primeiros seres humanos por ali, do clima à morfologia craniana, da produção de artefatos à fauna com a qual eles conviveram.
Acontece que, depois de esquadrinhar todas as coleções de fósseis humanos que já saíram de Lagoa Santa (o que corresponde a uns 250 indivíduos, de acordo com estimativas de Neves), nenhuma data parece romper a renitente barreira dos 9.600 anos, deixando os pesquisadores embaraçados. Se Luzia for tão "sui generis" quanto parece, isso significa que o carste não tinha população permanente no Pleistoceno. Para Neves, a explicação pode estar num modelo, ainda em gestação, que usaria evidências do clima e da vegetação pleistocênica para explicar por que Lagoa Santa estava vazia. Uma das evidências pode vir do fundo dos lagos temporários da região, que nos períodos de bonança climática permaneciam mais tempo cheios e recebiam deposição contínua da matéria orgânica, como o pólen de flores, que pode ser separado das amostras do solo e datado graças aos isótopos de carbono presentes no material orgânico. Por enquanto, as amostras de lagoas como a de Cerca Grande (outro sítio arqueológico da região) estão oferecendo uma hipótese tentadora: parece haver um pico de umidade que começa há 9.600 anos e vai até 8.000 anos atrás -período no qual se concentra a maioria dos restos humanos de Lagoa Santa. Antes disso, no Pleistoceno, o carste devia ser bem mais seco, um efeito da última glaciação que assolou o planeta, retirando água da atmosfera e transformando-a em geleiras. "Parece que todo mundo estava só esperando a área ter condições habitacionais", especula Neves. Antes disso, teriam existido grupos incursionando ocasionalmente pela região, mas com seus acampamentos mais permanentes -se é que se pode usar a palavra para se referir a nômades caçadores-coletores- perto dos grandes rios, como o São Francisco e o rio das Velhas, nos quais datas de quase 12 mil anos têm sido obtidas. Numa dessas incursões é que Luzia teria caído dentro do buraco em Lapa Vermelha, ou quem sabe foi jogada ali pelos membros do seu grupo depois de morrer. Nesse período de menos de dois milênios a região teria mantido as características dos primeiros povoadores da América, e por isso Neves e seus colegas decidiram classificar os habitantes como "paleoíndios tardios". "Não houve uma ruptura na cultura material, na morfologia, no padrão de assentamento ou na subsistência", ressalta o antropólogo. O último quesito dessa lista é intrigante. A primeira preguiça gigante encontrada no Cuvieri, com idade estimada em 9.900 anos, prova que os paleoíndios conviveram por um bom tempo com a megafauna da região, que incluía também criaturas como os gliptodontes (parentes do tatu com um casco do tamanho de um Fusca), as macrauquênias (herbívoros que lembram uma lhama com tromba), ursos e cavalos. Os caçadores do Paleolítico europeu e dos sítios da cultura Clovis na América do Norte se especializaram em caçar mamíferos de grande porte, mas o povo de Luzia aparentemente não chegava perto deles. "Não há evidências de que eles caçassem megafauna nem como atividade oportunista", destaca Neves, para quem ainda é difícil arriscar uma explicação para esse desprezo por fontes gigantes de proteína animal em favor de bichos menores, nem para o fim da megafauna na região. E, claro, ainda resta explicar como os mongolóides substituíram os paleoíndios -uma ruptura que não deixou vestígios genéticos nos povos indígenas de hoje. A resposta mais plausível para Neves é o extermínio. Um enigma que pode estar a caminho de uma conclusão é o que cerca a produção de artefatos (ou melhor, a falta dela) pelos paleoíndios. Embora os abrigos calcários sejam uma bênção para quem procura sepultamentos humanos, é misteriosa a falta de instrumentos de pedra. Na Lapa do Santo, um maciço de uns 30 metros de altura cuja escavação foi a ponta arqueológica do trabalho do grupo em julho, o problema parece particularmente agudo. Lascas e túmulos Os indícios da presença humana estão por toda parte, mas tênues: carvão de fogueiras, minúsculas lascas de quartzo, ossos de animais que viraram jantar. "Fraturas como essas são típicas", explica o arqueólogo Renato Kipnis, um dos coordenadores da equipe, com Piló, Neves e Astolfo Araújo. "Dá para ver que o osso foi torcido para que a pessoa pudesse comer o tutano", afirma Kipnis, mostrando um osso de veado. Kipnis, afável e tímido, contrasta com a personalidade marcante de Neves. Coça a cabeça diante de um dilema dos mais complicados: uma das quadras (buracos de um metro de lado que formam a unidade básica da escavação) acaba de revelar o que tem tudo para ser um esqueleto humano -dá para ver um acetábulo, osso que se encaixa no fêmur-, mas ele está bem na quina do buraco, enfiado no canto inferior direito. "Pior impossível", resume Kipnis, rindo sem jeito. É preciso abrir mais três quadras ao lado da original para revelar o sepultamento, que é finalmente confirmado como humano, assim como outros dois no mesmo sítio. A análise radiocarbônica ainda vai demorar, mas os esqueletos devem ter entre 8.000 e 9.000 anos. Por outro lado, não há nada mais raro nos abrigos do que um instrumento verdadeiro, como uma ponta de flecha. "Essa é uma questão que estava inquietando o professor Walter: a gente sabe que eles estavam aqui, a gente sabe que estavam produzindo. Mas o que eles estavam produzindo?", diz Estevan Azevedo Mazzuia, mestrando da USP que participa do projeto. A resposta, de acordo com o novo modelo que o grupo está desenvolvendo, é que os paleoíndios, paradoxalmente, não viviam nos abrigos: eles teriam usado esses lugares como refúgio sazonal, em épocas de chuva muito intensa, ou para enterrar seus mortos. Os verdadeiros acampamentos estariam a céu aberto e seriam, portanto, muito mais difíceis de encontrar, por causa da própria vastidão do terreno. A teoria, por enquanto, já rendeu o que pode ser o primeiro sítio paleoíndio a céu aberto do Brasil -por ironia, bem na frente da lendária gruta do Sumidouro. Uma sondagem rápida revelou lascas muito maiores do que de costume, carvão pronto para ser datado e, bem no fundo, um belo machado polido. Diante da própria Lapa do Santo, lascas maiores e pedaços de sílex, um mineral que não existe na região e precisaria ter sido transportado por uma distância considerável até ali. Com base nessas primeiras pistas, o grupo deve investir na busca por mais sítios a céu aberto. Kipnis se esforça para contextualizar todos os pequenos bocados de informação arqueológica que podem ser extraídos da Lapa do Santo num quadro paleoecológico no qual as lacunas ainda são muitas. "Todas essas informações, se elas formam realmente um quadro, precisam se encaixar", afirma o pesquisador. Isso também vale para a teoria do pico de umidade há 9.600 anos, que ainda está longe de se tornar verdade absoluta. "Existem alguns modelos climáticos que não batem com isso. E, por outro lado, o carste precisaria ser extremamente inóspito para impedir a ocupação, principalmente quando a gente sabe que lugares como o interior da Austrália, que é extremamente seco, já eram ocupados há uns 40 mil anos", diz o pesquisador. O final das escavações trouxe um bom presságio: amostras de carvão do sítio de Boleiras, escavado em 2001, foram datadas em 10.150 anos. Sacolejando dentro de uma Kombi pela poeirenta estrada de terra, em direção à base de pesquisa em Matozinhos, Neves faz piada, otimista com a manutenção do estrelato de Luzia. "Na semana que vem a gente vai pintar a perua de rosa e escrever na frente: "Luzia, a Rainha do Carste"." Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Turbilhão digital Índice |
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