São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003 |
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+ ciência Livro explora as controvérsias científicas e as disputas culturais que cercam a chegada do homem à América e os restos mortais dos primeiros americanos Visão dos ossos
Reinaldo José Lopes free-lance para a Folha
Qualquer um que já tenha cavado a terra do próprio quintal,
principalmente quando criança, sabe como esse procedimento costuma trazer coisas inesperadas à tona. Num dia de primavera de
1995, em sua casa em Toronto, no Canadá, a jornalista Elaine Dewar estava às
voltas com o solo doméstico quando tirou a sorte grande: desenterrou um osso
grande, pesado, claramente trabalhado
por mãos humanas -um osso de mamute, bem no meio do jardim.
Para Dewar, porém, o achado foi mais
perturbador do que divertido. "O reconhecimento de que eu não sabia nada sobre a pré-história do lugar onde eu vivia,
nenhuma idéia de quem esteve lá antes
de mim, veio à tona junto com o osso",
conta a canadense em "Bones", livro de
2001 ainda sem tradução em português.
A história do surpreendente achado
arqueológico caseiro ajuda a estabelecer
o clima do livro-reportagem de Dewar,
assim como a citação da célebre "visão
dos ossos" do profeta bíblico Ezequiel,
que encabeça a narrativa.
A missão do vidente -profetizar sobre uma multidão de esqueletos para que
eles ganhem vida- não é tão diferente
da que enfrentam antropólogos e arqueólogos, sugere a jornalista. Dispondo
apenas dos ossos secos do passado, eles
precisam reconstruir histórias complexas -como a da chegada dos primeiros
seres humanos à América, foco principal
da narrativa da canadense.
E, quando se trata desse tema em particular, a história aceita como verdadeira
andou mudando com uma frequência
enlouquecedora nos últimos anos. É essa
situação cambiante que Dewar tenta retratar, mas as preocupações da jornalista
investigativa não ficam só no lado científico do problema: avançam também para as disputas entre pesquisadores e nativos americanos, os quais tentam impedir
que os restos de quem eles consideram
ser seus antepassados acabem parando
numa gaveta de museu.
O livro é, em grande parte, a história da
derrocada do modelo "Clovis first" ou
"primazia de Clovis", amplamente aceito por pelo menos quatro décadas como
a explicação unificadora para a origem
do homem americano. Batizado em homenagem ao sítio arqueológico de Clovis, no Novo México, o velho modelo tinha pelo menos a vantagem da simplicidade: os primeiros humanos teriam entrado na América a pé, cruzando uma
ponte de terra entre o Alasca e a Sibéria,
há 11.500 anos. Eram, rezava o modelo,
caçadores de grandes mamíferos e ancestrais diretos dos índios modernos.
Simplicidade demais, na verdade. Em
pouco mais de dez anos, o velho dogma
(ainda defendido de forma empedernida
por alguns dos entrevistados de Dewar)
foi prostrado por fortes indícios de que
os primeiros americanos eram biologicamente muito diversos dos indígenas
atuais, pela descoberta de um sítio arqueológico no Chile pelo menos mil anos
mais velho que Clovis e pelo fato de que o
caminho para o interior da América do
Norte (que teria permitido aos siberianos chegar ao Novo México) estava fechado por imensas geleiras até cerca de
10 mil anos atrás.
No esforço para entender aquilo em
que está se transformando a "primeira
história americana", como ela a chama,
Dewar não hesitou em sair das fronteiras
da América do Norte. Todos os achados
mais importantes do continente são esquadrinhados pela jornalista, quase
sempre pessoalmente.
Do Alasca ao Piauí, ela conversa com
pesquisadores, visita sítios arqueológicos, vê esqueletos de 11 mil anos e apalpa
tecidos de 9.000 anos, além de encontrar
líderes indígenas que contestam o tratamento dado aos ossos ancestrais -e dão
sua própria versão mítica da grande jornada à América.
Bones -Discovering the First Americans 628 págs., US$ 30,00 de Elaine Dewar. Carrol & Graf Publishers. Onde encomendar Livros em inglês podem ser encomendados, em São Paulo, à livraria Fnac (tel. 0/ xx/11/ 3097-0022) e, no Rio de Janeiro, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/ 533-2237). Próximo Texto: Micro/Macro: Pragmatismo e sonho Índice |
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