|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Pragmatismo e sonho
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Qual é a origem da criatividade científica? Essa pergunta, como tantas
outras, tem muitas respostas. O que, na
opinião de alguns, significa que nenhuma delas é muito satisfatória. Eu discordo. A pergunta é que está mal formulada.
Discutir criatividade em ciência não
faz sentido. O que faz sentido é discutir a
criatividade dos cientistas. Existem os
mais pragmáticos, que equacionam fazer
ciência com a aquisição e organização de
dados obtidos no laboratório ou por
meio de observações de fontes longínquas, como em astronomia. Para esses, o
progresso em ciência depende da precisão dessas medidas, o que implica uma
íntima relação entre o progresso tecnológico e o científico. Sem novas máquinas e
aparelhos de medição, a ciência não
avança.
Existem também os sonhadores, aqueles cuja criatividade brota de uma pré-concepção de como o mundo deve ser
organizado, em geral inspirada por conceitos estéticos, como simetria e beleza.
"Sonhadores" talvez seja uma caracterização exagerada. Mas o ponto é que, sem
a impetuosidade, às vezes quase que irracional, que vem da inspiração, fica difícil
desvendar os mistérios mais profundos
da natureza. Ou seja, para os sonhadores, acreditar na verdade de suas idéias é
fundamental, mesmo que elas sejam inicialmente ridicularizadas por outros sonhadores ou por pragmáticos.
Claro, o adjetivo "sonhador", aqui, deve ser interpretado dentro de parâmetros científicos. Sonho não significa a atividade onírica comum a todos, mas a
inspiração que leva à construção de teorias cujas previsões devem ser testadas
cuidadosamente. Afinal, está se falando
de criatividade em ciência e não se deve
perder de vista que sua missão é explicar
o funcionamento do mundo à nossa volta (e o que existe dentro de nós).
Existem inúmeros exemplos na história da ciência de pragmáticos e sonhadores. Mas poucos ilustram tão bem a diferença entre os dois processos criativos
quanto as histórias do dinamarquês
Thycho Brahe (1546-1601) e do alemão
Johannes Kepler (1571-1630).
Brahe transformou a astronomia com
a introdução de instrumentos de altíssima precisão, no final do século 16. Ele
morreu oito anos antes da introdução do
telescópio como instrumento astronômico. Portanto, todas as suas medidas
das posições dos astros celestes, de planetas e cometas a estrelas e "estrelas novas" (hoje chamadas supernovas), foram
realizadas a olho nu. Na época, o modelo
introduzido por Copérnico em 1543, que
tinha o Sol e não a Terra no centro do
cosmo, ainda não era universalmente
aceito. Brahe, armado de seus instrumentos, entendeu que a questão só seria
resolvida definitivamente a partir de dados extremamente precisos.
Como tinha dinheiro, pôde financiar a
construção de instrumentos que foram
então usados na coleta de dados. Mas a
Brahe, brilhante observador, faltava o talento que poria então esses dados em ordem, montando o arcabouço teórico que
explicaria a estrutura do cosmo. Aqui
entra Kepler, o sonhador.
Kepler foi convidado por Brahe para
ser seu assistente no início de 1600. Mesmo sem dados precisos, ele já havia "adivinhado" a estrutura do cosmos. Para
ele, apenas a geometria poderia fornecer
uma resposta precisa. Isso porque Kepler era herdeiro das idéias dos pitagóricos, que viam a organização cósmica como sendo dependente dos arranjos dos
números e das formas geométricas. Para
Kepler, Deus era um geômetra, que certamente usou essas proporções estéticas
no desenho do cosmo. A questão era encontrar o arranjo preciso. E, para isso,
Kepler precisava de dados.
O encontro entre os dois, apesar de
muito tempestuoso, mudou a história da
astronomia. Com os dados de Brahe, Kepler obteve as três leis que regem o movimento dos planetas em torno do Sol,
confirmando definitivamente o sistema
copernicano e fornecendo os elementos
matemáticos que Newton mais tarde
usou em sua Teoria da Gravitação Universal. A moral da história? Sem dados
não há ciência; sem sonhos ela pode dar
passos, mas não grande saltos.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: + ciência: Visão dos ossos Próximo Texto: Ciência em Dia: Malditas estatísticas, benditas estatísticas Índice
|