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Ciência em Dia
Malditas estatísticas, benditas estatísticas
Marcelo Leite
editor de Ciência
Talvez nunca se venha a saber se o escritor americano Mark Twain (1835-1910) esteve certo ao atribuir ao estadista
britânico Benjamin Disraeli (1804-1881)
a famosa frase sobre os três tipos de falsidades voluntárias: mentiras, malditas
mentiras e estatísticas ("lies, damned
lies, and statistics"). Mas também é verdade -maldita verdade?- que a citação mais comum na imprensa britânica
já não diz o que pretendia dizer, na origem. Hoje em dia, nada ganha mais ares
de verdade do que um amontoado de
números e tabelas.
Jornalistas que o digam. Acossados pelo imperativo cada vez mais escorregadio da objetividade, os profissionais do
efêmero se aferram a estatísticas como
desesperados e pecadores tentam amparar-se na corda do Círio de Nazaré.
O caminho das pedras até o manancial
das manchetes já foi encontrado, entre
outros, por um IBGE profissionalizado.
O instituto desmembrou o Censo de
2001 numa infinidade de relatórios -tática conhecida no meio acadêmico como
"salame", em que teses e dissertações são
fatiadas numa série de artigos.
Assim como Disraeli pode ser como
não ser o "sábio estadista" citado pelo
economista e político Leonard Henry
Courtney (1832-1918) em palestra de
1895 nos EUA, presenciada por Mark
Twain, será difícil descobrir quem de fato começou a usar estatísticas para fisgar
jornalistas. Caso não tenham sido os primeiros, militantes verdes certamente se
encontram entre os pioneiros.
A tradição de sensibilizar consciências
com números alarmantes é tão estabelecida que já engendrou uma variante reacionária, na pessoa de Bjorn Lomborg
(www.lomborg.com). Ele é o autor do
muito falado e pouco lido "O Ambientalista Cético" (Editora Campus, 560 págs.
R$ 99,00), livro que o transformou em
celebridade. Pode-se dizer o que for dele
e do catatau que escreveu, menos que tenham sido desleais na escolha do campo
em que empreendem sua cruzada contra
o alarmismo ambientalista.
O problema para Lomborg é que ele
parece estar literalmente pregando no
deserto. As estatísticas da degradação
encontram tanta acolhida entre cidadãos
e leitores não porque eles são crédulos ou
impressionáveis (muitos decerto são),
mas porque as pessoas vivenciam a degradação ao longo da própria biografia.
Quem conheceu Ubatuba nos anos 60,
Arembepe nos 70 ou Mangue Seco nos
80 sabe do que se trata -para não falar
da avenida Paulista, que há quatro décadas ainda tinha ipês plantados dos dois
lados do leito de paralelepípedos.
Foi também nos anos 60 que Gagarin
entrou em órbita e o mundo ganhou
uma perspectiva global, como Planeta
Azul. Desde então não pararam de aparecer estatísticas dando conta das dificuldades que a espécie humana lhe impinge. Exemplos recentes, tirados da revista
"World Watch" (www.wwiuma.org.br,
no Brasil) de janeiro/fevereiro:
- Em 1960, havia 100 mil rinocerontes
negros na África, e hoje são 2.500;
- Cerca de 440 mil pedaços arrancados
de recifes de coral são vendidos por ano
no mundo, 350 mil dos quais comprados
por norte-americanos;
- A Noruega tem 4 milhões de pessoas,
mas um único de seus barcos pode capturar 120 milhões de peixes num ano;
- São necessários mil anos para formar
uma polegada (2,54 cm) de solo, mas os
EUA perderam um terço da camada de
solo fértil nos últimos 40 anos;
- Cabem dois aviões Boeing-747 (Jumbo) num estádio e 12 em algumas das
maiores redes usadas em pesca oceânica.
Benditas estatísticas.
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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