São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002 |
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+ciência Americano propõe a troca da tradicional classificação das espécies de Lineu por um sistema norteado pelas relações de proximidade evolutiva entre os seres vivos A nova ordem da vida
Reinaldo José Lopes Free-lance para a Folha
Em sã consciência, poucas pessoas se arriscariam
a colocar lado a lado porcos e baleias, como se
fossem parentes próximos. Sair chamando galinhas de dinossauros ou cobras, animais rastejantes por excelência, de bichos de quatro patas causaria
um grau parecido de estranheza. Contudo, mudanças
como essas, com cara de absurdo, mas fundamentadas
pela própria história da vida na Terra, são algumas das
consequências mais instigantes do PhyloCode (uma
abreviação inglesa para "código filogenético"), um novo sistema para denominar e classificar os seres vivos
que promete reconduzir a evolução, de longe a idéia
mais importante e unificadora da biologia, de volta a
seu devido lugar.
O principal idealizador do PhyloCode é o americano
Kevin de Queiroz, um californiano de 45 anos que é, ele
próprio, um enigma classificatório. "Sim, o meu sobrenome é português", diz Queiroz, "mas o meu avô era
mexicano e se chamava Padilla. Ele mudou de nome várias vezes, volta e meia adotando nomes portugueses.
Queiroz é o nome que ele usava quando meu pai nasceu." Para completar, o especialista em répteis do Museu Nacional de História Natural, em Washington, também tem sangue japonês. "Acho que meus nomes e
meu sangue são bem misturados", brinca.
De qualquer maneira, essa confusão genealógica não
atrapalhou os traços característicos da personalidade
do pesquisador: ordem, lógica, coerência interna. "Eu
sou uma pessoa que se esforça muito para ser logicamente consistente. E, além disso, gosto muito de pensar
sobre as consequências lógicas das coisas, e isso às vezes
leva a idéias novas, como a nomenclatura filogenética."
Apesar de esquisita, essa palavrinha de origem grega
tem um significado que não é nem um pouco extravagante: a filogenia consiste em olhar a diversidade das
formas de vida como uma grande família, organizando
criaturas em grupos de parentesco e descendência.
Tudo muito de acordo com a biologia evolutiva, sem
dúvida. Mas acontece que a maneira usada para organizar os seres vivos há quase 250 anos, argumenta Queiroz, não leva esse princípio básico em conta. De fato, o
sistema até hoje usado para designar as formas de vida,
conhecido de qualquer um que já tenha usado o indefectível Homo sapiens para incrementar uma redação
de colégio, é a nomenclatura lineana. Seu criador, o botânico sueco Carl von Linné ou Carolus Linaeus (1707-1778), elaborou o conceito de um nome duplo, ou binômio, de origem latina ou grega, cujo primeiro termo
(Homo) designava o gênero, um agrupamento mais
amplo de organismos, enquanto o segundo (sapiens)
era o nome pessoal e intransferível de cada espécie. As
espécies lineanas eram agrupadas em gêneros, depois
em famílias, ordens (a da humanidade, até hoje, é a dos
primatas), classes e reinos.
De qualquer lado que se olhe, a arquitetura teórica de
Lineu (como é geralmente chamado em português) foi
um avanço mais do que respeitável: para dar uma idéia,
naturalistas europeus da era pré-lineana eram obrigados a chamar uma simples roseira silvestre de Rosa
sylvestris alba cum rubore, folio glabro. O binômio de
Lineu reduziu ao mínimo necessário essa tagarelice latina e, de quebra, suas categorias ajudaram a impor um
pouco de critério científico, como o uso de semelhanças
anatômicas, numa época em que os animais eram divididos em selvagens e domésticos, ou terrestres, aquáticos e aéreos. Rebocado, pintado e ampliado, o edifício lineano continua firme de pé.
O grande problema, porém, é que Lineu fixou seu sistema em 1758 -exatos 101 anos antes da publicação de "A Origem das Espécies", de Charles Darwin, o livro
que instala de vez a evolução no trono da biologia. Para
Lineu, as subdivisões da vida eram só um recurso prático, organizacional: "A invariabilidade das espécies é a
condição da ordem [na natureza]", proclamava o naturalista, filho de um pastor luterano. É difícil achar algo
mais distante do que queria Darwin: "Nossas classificações deverão se tornar, até onde for possível adequá-las,
genealogias". A frase, não por acaso, abre o artigo de
Queiroz que se tornou o embrião do PhyloCode.
Organizando clados cada vez mais inclusivos (uma vez que, no fim das contas, toda a vida na Terra descende de um só ancestral comum), o agrupamento nesse esquema impediria a camisa-de-força lineana de hoje, que exige a associação de cada nova espécie com todas as categorias, da mais fundamental às maiores. Essa regra incômoda costuma deixar pesquisadores perplexos na hora de lidar com espécies fósseis, que têm pouco ou nenhum parentesco com animais atuais mas que, mesmo assim, precisam ganhar um nome para sua família ou ordem taxonômica (categorias acima do gênero). "Sem dúvida tais categorias amplas têm pouco sentido evolutivo. Mas não porque os agrupamentos em si sejam menos "reais" que o gênero ou a espécie, mas porque eles não são equivalentes. Ou seja, uma ordem de insetos não tem a mesma amplitude de uma ordem de mamíferos, tanto em termos evolutivos quanto em biodiversidade", diz o paleontólogo brasileiro Max Langer, especialista em dinossauros. "Nesse ponto, concordo totalmente com o PhyloCode", afirma Langer, que vê algumas fraquezas na proposta de Queiroz. Baleia com casco As mudanças mais chocantes do ponto de vista de um leigo devem nascer da firme disposição de não permitir clados parafiléticos. Tradução: se dois grupos hoje separados brotaram de um mesmo ancestral comum, eles têm de estar juntos. "Nós já incluímos as aves dentro dos dinossauros e provavelmente incluiríamos os cetáceos [baleias" dentro dos artiodáctilos [mamíferos com cascos e número par de dedos"", afirma Queiroz. Essas mudanças, baseadas em reviravoltas mais ou menos recentes do registro fóssil, sublinham o fato de que os animais que hoje têm penas evoluíram não de qualquer grupo réptil, mas a partir de formas não muito diferentes do célebre velociraptor, também cobertas de penas. Ou que criaturas muito semelhantes aos suínos de hoje, vagando pelas praias de 50 milhões de anos atrás, acabaram colonizando os oceanos da Terra e dando origem a baleias e golfinhos. No caso de grupos que a humanidade já encara há tempos como unidades naturais, o potencial de transformação da nova proposta pode ser ainda mais radical, sugere Dalton Amorim, da USP: "A partir do momento em que os grupos parafiléticos desaparecem, os que hoje nós chamamos de peixes deixam de ser uma unidade", afirma o pesquisador. "Aí, nós enxergaríamos a relação muito clara que existe entre os chamados peixes pulmonados e os vertebrados terrestres", diz Amorim. O velho termo "invertebrados", útil para jogar no mesmo saco animais tão distintos quanto um polvo e uma abelha, também cairia por terra: "Os invertebrados deixariam de existir como grupo e animais como os equinodermos [estrelas-do-mar e ouriços-do-mar" seriam colocados numa posição mais próxima dos próprios vertebrados", afirma Amorim. Para Queiroz e seus companheiros, todo esse remanejamento um tanto amalucado de criaturas no tecido evolutivo acaba com um mal-disfarçado domínio do arbítrio na taxonomia, no qual critérios morfológicos subjetivos podiam fazer e desfazer grupos de seres vivos ao capricho dos classificadores, quando "alguém decide que dois taxa antes considerados duas famílias distintas apenas "merecem" ser subfamílias, e então junta as duas numa só família", diz o herpetologista. Por outro lado, as idéias sobre o parentesco entre espécies atuais e extintas podem virar do avesso por causa de um único fóssil, e isso aconteceu mais de uma vez em tempos recentes. Segundo Langer, essa poderia ser uma fraqueza da obsessão do PhyloCode com a história evolutiva. "Para aqueles que querem ver a nomenclatura filogenética classificando todos os seres vivos de uma forma completa e imutável, isso é um problema." Queiroz, porém, apesar de suas críticas ao que considera a arbitrariedade do sistema lineano, não se deixa abater: "Esse tipo de instabilidade é uma coisa boa. Nós precisamos ser capazes de revisar nossas idéias sobre a composição dos taxa conforme adquirimos informações novas. Como algumas pessoas dizem, "estabilidade é ignorância". O que nós vemos como a vantagem do PhyloCode é que, nesse sistema, mudanças na composição dos taxa só ocorrem se as idéias sobre a filogenia mudarem", afirma o pesquisador. É tudo invenção O próprio binômio lineano, até agora sacrossanto nas muitas reformas propostas ao velho sistema, não é exatamente intocável, diz Queiroz. "Nomes binomiais para as espécies podem ou não persistir. Não é algo que nós já tenhamos decidido. Mas, mesmo se eles persistirem, o primeiro nome não seria mais o nome de um gênero; seria apenas a primeira parte de um nome de espécie em duas partes." Alguém um pouco mais cético e menos enfurnado nas particularidades da teoria evolucionista, de olho no escasso registro fóssil, poderia questionar a validade de um apego tão grande à sucessão de espécies para classificar a vida. Se os buracos nesse contexto nunca serão totalmente preenchidos, parece possível relativizar o critério filogenético. "É preciso ter em mente que filogenias também são construções humanas, de modo que a classificação proveniente delas não é mais real que outras classificações. Uma coisa são as relações filogenéticas entre os organismos, que são ciência empírica, "dura". Outra coisa é o nome que damos aos diferentes grupos, algo que é subjetivo, mas utilitário", diz Langer. Queiroz, claro, se recusa a aceitar essa relativização. "Na minha opinião, essa é uma visão datada da taxonomia. Os grupos são vistos como classes, que não estão certas ou erradas, mas são apenas mais ou menos úteis. Mas a visão moderna é que a taxonomia pode nunca corresponder exatamente às verdadeiras relações evolutivas, mas ela pode ser testada e avaliada de acordo com padrões científicos, assim como qualquer outra teoria científica", afirma. Seja como for, Queiroz está disposto a efetivar os princípios do PhyloCode, com a ajuda das opiniões da comunidade científica. "Neste exato momento a coisa está bem controversa, com muitas pessoas apoiando e outras se opondo a nós. Estamos tentando organizar um segundo simpósio para tomar decisões sobre novas modificações sobre o código. Depois dessas revisões e depois que elas forem aprovadas pelo grupo consultivo tentaremos publicar o código e torná-lo oficial", afirma. Se o reinado lineano finalmente está com os dias contados, Queiroz não tem uma data para essa mudança. "Essas coisas são difíceis de prever. Mas, no meu entendimento, a nomenclatura filogenética representa o estágio mais recente de um processo que eu chamaria de evolucionalização da taxonomia", diz. "Não vejo razão para que esse processo acabe agora." Próximo Texto: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: Estrelas estranhas Índice |
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